O Caminho Sagrado: Matuke e5n2t

Thiago Mendes

O caminho sagrado

prime Goiânia 2020

À Fran e às duas Estrelas que dão norte ao meu Caminho!

Disse-lhe Jesus:Eu sou o caminho, e a verdade e a vida; ninguém vem ao Pai, senão por mim.

Sumário

Prólogo 1. Domínio Próprio 2. A Solidão 3. O Milagre 4. O Equilíbrio 5. O tédio 6. A Repetição 7. A Sabedoria 8. Deus 9. A Gratidão 10. Iluminação 11. A tristeza 12. A Responsabilidade 13. O improviso 14. O sentido 15. O amor

Epílogo Sobre o autor

Prólogo

Era final do mês de junho e o inverno estava chegando. As árvores perderiam suas folhas, os pastores deixariam as montanhas com os seus rebanhos, e a neve em breve voltaria a revestir a paisagem. No Chile há um ditado antigo que diz: céu vermelho à noite, alegria ao pastor. Céu vermelho pela manhã, atenção ao pastor. E os Céus chilenos não se furtavam em dizer que este ano o inverno viria longo e rigoroso. Os pastores partiriam em busca de pastagem – reconhecendo que era bobagem colocar a vida das ovelhas em perigo. Afinal, recuar nem sempre é sinal de fraqueza, mas uma estratégia de defesa. Embora aquela fosse a época mais solitária e sofrida do ano, a beleza da paisagem parecia compensar o sofrimento e a solidão. Alguns invernos são de fato mais longos e rigorosos do que outros, mas eles nos dão a oportunidade de aprender a compartilhar o que temos e a aceitar do outro, aquilo que não temos. A generosidade deve estar presente tanto na vida de quem dá como na vida de quem recebe. Todos os anos, quando os ventos que vêm do Sul começam a assoviar batendo contra os picos mais altos, estão anunciando que em mais alguns dias a neve cobrirá tudo ali.

*

Álih ara toda a sua vida naquela região montanhosa do Chile e dividia as opiniões dos poucos moradores do lugar. Alguns afirmavam que o velho era misterioso, solitário, um mago – talvez. “Não se pode confiar em alguém que está sempre só”, diziam estes. Outros, no entanto, defendiam que ali estava um homem santo que dedicou toda sua vida à meditação e à caridade. “É uma pessoa iluminada, deve ter descoberto que tudo nesta vida é banal e, por isso, decidiu dedicar-se aos mistérios de Deus.” Ele nunca deu atenção às opiniões dos outros a seu respeito. Quando alguém vinha lhe visitar e acabava por contar sobre o que algumas pessoas do povo diziam, o velho abria um sorriso generoso. “Eu não sou bruxo. Minha vida é iluminada demais para tanta escuridão. Não, eu também não sou um santo. Meus caminhos são simples demais para tamanha luz.” As pessoas vinham de longe em busca de consolo, direção, ou de uma palavra que lhes levasse à uma vida melhor – que lhes livrasse de suas Angústias Pessoais. “Os dias são maus”, reconhecia o velho, “e ao longo da jornada da vida vamos acumulando sentimentos desnecessários e, com o tempo, eles vão se tornando parte de nós. Aí o sofrimento deixa de ser acaso e se transforma em condição. É como se deixasse de ser a roupa que vestimos e se transformasse em um órgão vital que, se retirado, nos levaria à morte súbita.” Porque as pessoas nunca estiveram tão cheias de coisas para fazer e ao mesmo tempo tão tristes e vazias. Sobra entretenimento e falta sentido. Nunca houve uma época em que tantos de nós habitássemos este planeta ao mesmo tempo, ainda assim, nunca nos sentimos tão sozinhos nele. “Angustia Pessoal”, ensinava o velho, “é como uma semente que recebemos ao nascer. De certa forma todos nós temos que carregá-la durante a vida, mas alguns decidem lançá-la em terreno fértil, sem imaginar que chegará o momento em que se tornará uma árvore e seus frutos serão mortais.” A maioria das pessoas que vinha até as montanhas em busca do guia, parecia partir melhor. Não que os seus problemas fossem resolvidos, ou que encontrassem todas as respostas que vieram buscar, mas descobriam que muitas vezes apenas o fato de serem ouvidas já fazia a vida, um fardo mais

leve. Como podar alguns galhos da árvore das Angústias Pessoais a fim de aliviar a culpa, o medo, a tristeza, as decepções, o rancor, a falta de perdão, a ansiedade, as preocupações do dia a dia. “A árvore das Angústias Pessoais dá frutos variados”, ensinava Álih, “mas o gosto de todos é igualmente amargo, e os resultados igualmente mortais. Há coisas que, ou as arrancamos de nossas vidas, ou elas arrancarão tudo de mais precioso que nós temos.” Claro, nem todos que procuram ajuda querem se tornar pessoas melhores. Muitos só estão buscando sentirem-se melhores. Nestes, os efeitos são sempre rasos, superficiais, mexem com os sentimentos, mas não alcançam o caráter. Logo estarão se alimentando dos mesmos frutos amargos. Afinal, a alma é faminta por natureza e estará sempre em busca de satisfação. O guia não fala muito. Sua presença leve e segura, sua voz mansa e paternal, os olhos pequenos e brilhantes e seus ouvidos atentos, atraem mais que suas palavras de sabedoria. Senta-se em uma cadeira de madeira à sombra de uma grande árvore, e ali, separados apenas por uma mesa simples, Álih e aqueles que o busca, am horas podando os galhos das Angústias Pessoais. As pessoas falam sobre as perdas que tiveram, ou os sonhos que não realizaram, às vezes, o medo que as persegue, a solidão que as acompanha. “A nossa agem por aqui é muito rápida”, alerta o guia. “Se não tomarmos cuidado, gastaremos este pouco tempo que temos apenas alimentando o sofrimento e não sobrará espaço para enxergarmos o quanto a vida é valiosa. Só uma libertação profunda nos levará a experimentar o Melhor de Tudo.” Alguns, claro, vão embora frustrados. Vieram em busca de uma fórmula mágica, ou de algum segredo. “Não adianta partir de mãos cheias se o coração continua vazio”, dizia Álih. Mas estes já estão viciados às comodidades e não querem nada que lhes custe mais que uma visita ao sábio das montanhas. Partem frustrados. “Ele é simples demais para ter o direito

de falar sobre felicidade”, dizem alguns. “É solitário demais para ensinar sobre a arte da convivência”, criticam outros. Mas o velho não se importa. Sabe que a felicidade não está em quantas coisas temos, nem a vitória sobre a solidão, em quantas pessoas nos cercam. Muitos dos que lhe procuram, estão cheios de bens e cercados de gente, mas mesmo assim são infelizes. Têm tudo que sonham, mas não o principal: alegria em viver. Falta-lhes o melhor de tudo. “Há muitas maneiras de nos esconder de nossas Angústias Pessoais”, dizia Álih. “Os vícios, a religião, as ocupações do dia a dia, a busca por reconhecimento, o trabalho. As pessoas se tornam viciadas, religiosas, ocupadas, reconhecidas, mas acabam descobrindo que continuam tristes e vazias. Alguns decidem acompanhar a miséria do mundo mais de perto: criam associações de caridade, doam parte de suas fortunas, fazem palestras explicando que devemos ser gratos. Afinal de contas, se você está lendo este livro, sua vida certamente é bem melhor do que a da grande maioria da população mundial. Vivemos em um mundo onde uma criança morre de fome a cada dez minutos. Por dia, são quase 30 mil seres humanos que morrem por falta de alimento. Atualmente quase um bilhão de pessoas a fome, isso equivale a toda a população das Américas, ou da Europa. “Alegremo-nos”, proclamam alguns. “Existem irmãos em estado bem pior. Apesar de não encontrarmos nenhum sentido nesta vida, sejamos gratos. Afinal, somos bem-aventurados.” Até as obras de caridades de algumas pessoas são feitas mais para elas mesmas do que para os necessitados. Muitos daqueles que criam ONGS, associações, defesa disso ou daquilo, estão, na verdade, apenas buscando utilidade para seus dias. O sentimento de utilidade também é um ótimo refúgio para aqueles que fogem da tempestade que constantemente assola seus corações. A árvore das Angústias Pessoais cresceu, deu seus frutos amargos e cada um que se esconda onde e como puder.

Às vezes se torna difícil manter as aparências, quase entramos em desespero, surtamos, pensamos em procurar ajuda, mas ninguém parece confiável o bastante. Aí mais trabalho, mais caridade, mais religião, mais busca por reconhecimento, mais ocupação. Até que os mais sinceros decidam se render e buscar alguém que lhes ouçam. São estes que vêm até as montanhas, sentam-se no banquinho de madeira, contam suas histórias e, muitos deles partem mais felizes. Continuam de mãos vazias, mas seus corações parece partirem cheios. “Eu não tenho paz nesta vida”, contam alguns. “Tudo que faço parece pouco, insuficiente. Apesar de todo esforço, continuo me sentindo culpado, inútil e infeliz”, lamentam outros, ou: “O amor virou as costas para mim...” A sombra da árvore é fresca e agradável. Álih toma um gole de água, olha nos olhos tristes do corajoso à sua frente e procura sentir um pouco da sua dor. “Comece cuidando melhor de você mesmo”, geralmente aconselha o velho. “Só assim terá forças o bastante para cuidar daqueles que estão mais próximos e, um dia, talvez, poderá cuidar do que hoje lhe parece impossível. Lembre-se: a mãe pássaro precisa estar saudável para ser capaz de voar em busca de alimento para os que vivem em seu ninho. Ela sabe que, cuidando bem dos seus, já estará ajudando a manter viva toda a sua espécie.” Álih nunca disse a ninguém que estava atendendo pessoas deprimidas, ou anunciou nas redondezas que tinha uma fórmula mágica que dava alegria e sentido para a vida das pessoas. Sua rotina é como a de qualquer outro que mora naquela região: acorda de manhã, faz suas preces, toma chá e, se for durante o inverno – de preferência bem quente, afinal o Chile já é frio, ainda mais entre as montanhas, com seus picos que ficam congelados praticamente o ano inteiro. Depois cuida das plantas, ocupa algum tempo em silêncio observando a beleza das montanhas e os detalhes de cada árvore de seu pequeno quintal. Se aparecer alguém para conversar, ele para tudo e gasta o tempo que for

necessário com a visita. Não há rituais religiosos, nem lista de regras. Alguns querem saber quanto custa aquele momento, mas o guia os repreende: “Já tenho tudo o que preciso. Sejamos como o sol, que nem sabe a quem está iluminando, mesmo assim nunca deixou de se lançar sobre nós. Façamos o bem a todos sem exigirmos recompensas.”

*

O dia de hoje havia sido especialmente cansativo: Álih atendeu algumas pessoas que se dirigiram a ele em busca de respostas para seus sofrimentos, foi à vila comprar mantimentos, molhou as plantas, e terminara de alimentar os animais. Depois de cumprir suas tarefas, foi à cabana e pegou o arco e algumas flechas. Álih trouxe o arco já com a flecha presa à corda até o centro do seu peito. Levantou-o acima da cabeça, e à medida que abaixava as mãos, começou a abri-lo. Quando chegou com a flecha na altura do seu rosto, o arco já estava completamente estendido. Por um momento que pareceu durar uma eternidade, o guia e seu arco permaneceram imóveis. Como todo Mapuche, Álih havia aprendido muito cedo a arte da guerra e da meditação. Ambos geram o equilíbrio. E um Guerreiro Mapuche não pode ser vencido pela ansiedade. É preciso dominar a respiração. É preciso vencer a distração. Enquanto os olhos estudam o movimento das folhas a fim de identificar o sentido do vento, seus braços medem a intensidade, a fim de puxar a corda. Álih sabe que conhecer todas as técnicas não é o suficiente para alcançar o

tiro perfeito. É preciso dominar a intuição. E só uma alma que está em paz consegue ouvir a voz do anjo que diz: “Matuke!”. A palavra sagrada do povo Mapuche significa “Rápido” e fala da urgência de tomar decisões que são importantes. O velho Guerreiro fecha os olhos, respira fundo e, quando vai soltar a corda, sente uma mão segurar seu ombro direito. — Boa noite, senhor. – diz o rapaz de óculos, que parece cansado e aflito. Álih baixa o arco e esquece seu alvo. — Quem é você? De onde vem? O que está fazendo aqui? O velho parece irritado com a atitude mal-educada do visitante. — Eu me chamo Jávier, venho de Santiago. Estou de férias da faculdade, estudo medicina e busco desenvolver minha espiritualidade. O velho o observa com olhar desconfiado. — Sua espiritualidade? E quem lhe disse que posso fazer alguma coisa por ela? Cada um de nós é responsável por sua própria busca – diz o velho. — Sim, cada um é responsável por sua própria busca – concordou o rapaz. – E estou aqui justamente tentando fazer a minha parte, vim perseguir os meus milagres. — Milagres não são perseguidos e sim atraídos. Não importa onde nós estejamos. Se gerarmos o ambiente de fé necessário, os milagres serão despertados. — Então talvez eu seja a sua atração. Pode ser que necessite tanto de mim quanto eu de você. Muito prazer, eu sou o seu milagre. – O rapaz tenta criar um clima de descontração. Sem sucesso. Nesse momento Álih dá as costas ao viajante, mostrando que ele não era

bem-vindo, e volta a mirar seu alvo. Mais respiração. Mais concentração. Jávier volta a falar: — Posso ar um tempo com você? – propõe. O velho não tira os olhos de algum ponto desconhecido: — E por que eu lhe receberia em minha casa? — Por que eu sou parte da sua missão. Sem mim sua trajetória será incompleta. Álih segue paralisado segurando seu arco: — Já estou velho, completei a minha trajetória há anos. Não preciso de você. Só estou esperando a morte chegar e, quando ela vier, direi a mim mesmo: “Combati o bom combate, completei a carreira e guardei a fé.” Estou tão em paz com a minha vida quanto com a minha morte. Sou um Mapuche. Não tememos viver ou morrer. – Responde o guia com aparente irritação. — E você vai atirar em que, afinal? – Pergunta o visitante. — Na maçã mais alta daquela macieira. – Ele fala e balança o arco apontando para a árvore que deve estar a uns 70 metros de distância. — E por que precisa dela? – Jávier deu alguns os para mais perto de Álih, antes de prosseguir. – Tenho certeza que você faz isso há anos. Já deve ter lançado milhares de flechas. Mas precisa justamente da maçã que se esqueceu de cair no tempo certo. E sabe por quê? Por que sem ela, o arco e a flecha não têm utilidade. Álih se mantém em silêncio. Sabe que o arqueiro necessita tanto de seu alvo quanto o guerreiro de seu adversário e o viajante de seu caminho. — Nossa missão será completa se estivermos juntos. – reforça o rapaz. O velho finalmente dispara partindo a maçã ao meio.

— Eu preciso da hospitalidade da sua casa por alguns dias – insiste o moço. — Quem disse? – Questiona Álih franzindo a testa com olhar incrédulo. — A mesma voz que lhe diz: “Matuke” – antes de você disparar seu tiro! O guia percebe que o jovem diante de seus olhos não é qualquer um. A lei Mapuche da hospitalidade diz que jamais devemos negar água, comida e abrigo. “Muito menos se o candidato a hóspede sabe conversar com anjos”, lembrou o velho em silêncio. — Muito bem – disse Álih. – Você fica. Mas só por quinze dias. — Combinado. – Sorriu o rapaz. – Quinze dias. Este seria o período perfeito para que ele desenvolvesse sua espiritualidade e voltasse a Santiago antes do reinício das aulas.

*

Como já está escurecendo, ambos caminham em direção à cabana. Lá dentro, Jávier repara cada detalhe à sua volta: o fogão à lenha no canto da cozinha, a mesa de madeira com apenas duas cadeiras, os pratos já postos e a bacia encostada na parede – provavelmente onde tomará banho pelos próximos 15 dias. O guia lhe serve uma sopa que cheira bem e ambos se sentam. — O que você trouxe na bagagem? – Pergunta Álih. — Uma alma faminta por respostas e uma mochila cheia de sonhos. – Responde o rapaz colocando a primeira colher de sopa na boca. — Nenhum homem na face da Terra é capaz de atravessar estas montanhas se não tiver fé. A fé é como um fogo que consome e, acredite – o velho coloca mais uma colherada na boca e volta a falar: – a única coisa capaz de mudar

verdadeiramente as pessoas é a fé. O rapaz observa o fogo que queima a lenha ali na fornalha. A madeira ainda verde e levemente molhada reluta para se entregar à força do fogo, mas acabará por entender que o fato de estar sendo queimada não significa o seu fim, e sim o início de um novo estágio em sua missão. Já deu seus frutos, fez sombra a viajantes cansados e agora irá tornar-se cinza e terminará por adubar outras plantas que estão em etapas diferentes do caminho. Porque a morte não existe como fim. O que existe são fases diferentes de uma mesma jornada. Os dois terminam a sopa e sentam-se em um banquinho de madeira na porta da cabana. Está frio; dali pode-se ouvir o barulho das águas do rio Áliphen e, do outro lado, o assovio do vento que bate agressivo contra os picos mais altos das montanhas. Ambos olham para o céu que está repleto de estrelas. Jávier fala primeiro: — Talvez nunca descubramos de fato como tudo isso foi criado, não é mesmo? A pergunta é retórica. O rapaz talvez só desejasse ouvir a opinião de Álih sobre a origem da vida, o que seria certamente uma opinião primitiva, já que sendo descendente de uma antiga tribo indígena, os Mapuche, certamente não frequentou uma faculdade. O velho dá um suspiro: — Tudo que nossos olhos podem ver é a realidade, não o Real. Pense comigo: o Real é a Causa; a realidade é o efeito. Jávier se ajeita no banquinho que já começa a incomodar. — O Real é o que alguns chamam Deus, Yahveh, enfim – o Absoluto. Enquanto que o realizado é Maya, a natureza. — E se Deus tivesse escolhido não criar nada? – Interrompe o rapaz começando a achar a conversa interessante. — Deus é pura atividade – responde o guia sem pensar. – Mas se tivesse decidido por permanecer hermeticamente fechado em sua Divindade, sem nenhuma atuação externa; para si mesmo Ele seria suficientemente pleno.

Mas o Real decidiu criar a realidade. E o que podemos ver aqui é Maya, o Verbo, o Haja – e houve! A criação não faz de Deus mais Deus. Mas é Nela, em Maya, que habita a Sua revelação mais óbvia. Qualquer pessoa é capaz de olhar a realidade e perceber nela a ação plena do Real. — Por que acha que Ele decidiu nos criar? Digo, o ser humano? — Por que só nós somos capazes de olhar tudo isso e dizer: puxa! Somos a única consciência da criação. Nós, mesmo em nossa absoluta insignificância, somos a única partícula de Maya capaz de perceber a si mesma, de maneira que o universo depende tanto de nós para continuar existindo como nós dependemos dele. Sem a consciência para percebê-lo, avaliá-lo, julgá-lo infinito ou não, o universo seria – mesmo com toda a sua imensidão – um puríssimo nada. Além disso, o Absoluto nos criou para que pudéssemos – e podemos – relacionarmo-nos com Ele. — Me sinto inútil. — Acredite meu rapaz: cada alma que desce aqui na Terra tem a sua missão. – Consola o guia. Os dois se levantam e entram na cabana. Amanhã será o primeiro, de 15 dias estudando O Caminho Sagrado e as leis Mapuche. Em cada dia estudarão uma lição diferente.

1. Domínio Próprio

Apesar do inverno já estar se aproximando, o dia seguinte amanheceu ensolarado entre as montanhas. Quando Jávier se levantou o guia já havia preparado o chá e varria a porta da cabana. O rapaz repara o chão de terra batida já aguado e varrido, duas varas de pescar enfiadas nas travas do telhado, o arco e as flechas pendurados, o portal baixo – na altura de Álih, dois degraus miúdos que já dão para o terreiro e, lá embaixo – a uns 80 metros, está o rio Áliphen, com suas águas enganosamente tranquilas. No quintal, as árvores com suas saias robustas, oferecem sombra para dar descanso e folhas para dar trabalho na mesma proporção; a cerca de madeira baixa dividindo todo o quintal, a bica de água cristalina que nasce no pé da montanha e desce ando em frente à cabana, e a grama verde e rasteira, que parece um tapete árabe, que cobre toda a frente da casa. — Em primeiro lugar, saiba que eu não estou aqui para ensinar-lhe sobre cultura ou religião. O que posso lhe oferecer são princípios para a vida, e eles podem ser identificados por qualquer pessoa, de todos os credos ou costumes. Neste primeiro dia vamos estudar sobre autocontrole. – fala o guia enquanto caminha na direção do rapaz. — Sempre quis saber por que é tão importante dominar a nós mesmos. — Porque aqueles que desejam evoluir precisam entender que o primeiro o é controlar a própria alma. Jávier já lera sobre isso em uma revista científica: “Precisamos gerenciar as nossas emoções porque se elas não forem bem geridas, colocarão todo o resto em perigo”, ainda é capaz de se lembrar de cor, do estudo de um psicólogo americano que fala sobre gerenciamento de emoções. “Há milhões de pessoas habilidosas no mundo e que poderiam construir coisas extraordinárias, mas todo o talento que possuem perde o

valor porque são descontroladas emocionalmente. O descontrole emocional gera desânimo, perda de foco, mudança repentina de propósito, mudança na maneira de tratar as pessoas – o que geralmente as afasta do convívio. Cada um de nós possui uma tendência a algum tipo de descontrole emocional. Alguns sofrem mais com a ira, outros com a inveja, o medo, a tristeza, ciúmes, excesso de euforia, ansiedade, pessimismo – todos nós temos os nossos inimigos emocionais e eles precisam ser controlados para que possamos seguir adiante. Sem vencer esses gigantes, seremos constantemente sabotados por nossas inconstâncias emocionais.” Jávier já tentara mais de uma vez controlar seus sentimentos, mas em todas elas, terminou frustrado. Já feriu pessoas importantes com palavras infelizes; já se enclausurou por causa da depressão e desejou a morte – mas nem ela lhe quis. Já questionou o porquê de estar aqui, neste mundo vazio e sem respostas – mas nenhuma resposta foi dada e continuou vazio. Já teve que se arrastar da cama para enfrentar a vida. A mesma vida. “Acordar de manhã, ir para a faculdade, chegar ao final da tarde, ir para o trabalho, e tudo isso para tentar construir uma carreira e, assim, ar anos fazendo exatamente a mesma coisa. Casar, ter filhos, uma casa no campo, alguns cachorros, sonhar com uma aposentadoria e adiar todos os sonhos para quando ela chegar e, quando ela chegar, descobrir que tudo deveria ter sido feito antes. E aí aprender na prática que somos mantidos vivos não pela conquista em si, mas pela expectativa de conquistar. É como se todos os nossos sonhos deixassem de fazer sentido quando finalmente são realizados.” — Mas gerenciar as emoções é apenas uma parte do autocontrole. – Álih interrompe seu pensamento. – Por exemplo, os impulsos que, aliados à ansiedade, trabalham a fim de viciarem a alma. E eu lhe digo meu rapaz: não há nada pior do que uma alma viciada em coisas inúteis. O moço ouve atento. Sabe bem do que o guia está falando. Álih prossegue: — Minhas palavras não poderão fazer muito por você. Mas existem duas coisas que poderão ajudá-lo. Primeiro: amplie seu autoconhecimento. Só quem conhece a si mesmo é capaz de evoluir. Segundo: se comprometa intensamente com a sua busca espiritual e vá tirando, aos poucos, tudo

aquilo que lhe afasta do Caminho. Nenhuma transformação profunda é automática. Este tipo de mudança de mentalidade exige tempo, disciplina e muita dedicação. Mas lembre-se: nesta dimensão da vida nunca seremos senhores absolutos de nós mesmos.

*

Álih segura a mão do rapaz. — Feche os olhos. – ordena. Ele obedece. — Você confia em mim? – questiona o velho. — Bem, estou aqui, não é mesmo? — Tire sua roupa. O rapaz tira a jaqueta. — Toda a sua roupa. Mesmo sem jeito e de olhos fechados, Jávier não questiona. Tira primeiro o par de tênis e as meias, depois a camiseta, desabotoa o cinto e finalmente desce as calças. — Agora venha comigo. – o guia lhe segura pela mão. – Você conhece a si mesmo? É capaz de se controlar? O tom do velho é amável, respeitoso, seguro e desafiador. Durante aqueles poucos os que pareceram atravessar todo o deserto do Atacama, Jávier sentiu-se estranhamente incapaz. Ele já havia tido esta mesma sensação na noite anterior quando Álih falara do Absoluto e de Maya, mas agora era diferente. Em um milésimo de segundos se achou

ridículo. Estava com 23 anos de idade, havia estudado nas melhores escolas do Chile, pertencia a uma família abastada, estava no último ano da faculdade de medicina, aquelas seriam as últimas férias escolares de sua vida. Poderia estar curtindo estas benditas férias em qualquer outro lugar do mundo. Mas não: estava ali, em um lugar que não aparece em nenhum dos mapas de seu país, nu, de olhos fechados e sendo levado por um velho, sabe-se lá para onde. “Bendita intuição”, lembrou. — Você confia em mim? – O guia volta a perguntar. O rapaz não responde nada desta vez, provavelmente por que estava irritado consigo mesmo. Álih continua lhe puxando pela mão. Para piorar as coisas o sol se esconde atrás de uma nuvem qualquer. Faz muito frio. — Chegamos. Preparado? “Preparado para que?”. Jávier não fazia a menor ideia sobre o que iria lhe acontecer: — Bem, estou aqui, não é mesmo? – Repete. Seu tom agora já dava mostras de irritação, o que não parecia incomodar o guia. Álih lhe faz sentar na bica. A água está gelada. Depois tem seu corpo levemente recostado para trás ficando apenas parte do rosto sem ser coberto pela água. Era como se mil facas lhe penetrassem o corpo. Nem um suspiro, careta ou pedido de socorro. Ele fica ali, nu, deitado na água gelada. — Agora procure identificar mentalmente cada parte de seu corpo. O jovem sente a água gelada penetrar sua alma e, pouco a pouco, identifica os dedos, os pés, suas pernas, a barriga, as costas, o pescoço. Mil palavras parecem vir ao mesmo tempo: domínio próprio, equilíbrio, bom-senso, Absoluto, autoconhecimento, ansiedade, compulsão, sacrifício, disciplina,

evolução, Maya, Yahveh, Guerreiro Mapuche, “Matuke!”... Estranhamente uma paz parece inundar instantaneamente sua alma. Uma sensação que Jávier jamais sentira antes. Descanso. Alívio. A Paz que Excede o Entendimento. Como se aqueles poucos minutos nas águas tivessem sido capazes de levar um peso que ele carregava há anos. Por um segundo pareceu ser capaz de dominar cada milímetro de sua vida. Um sentimento estranhamente oposto ao que tivera há alguns minutos atrás, quando se viu incapaz de tudo. — Se entregue. – ouviu o guia dizer com uma voz que parecia distante. – quando nos tornamos a Oferenda, o Absoluto nos ajuda a compreender a nós mesmos. Enquanto sentia a água percorrer seu corpo e sua alma, Jávier fez uma prece silenciosa:

Entrego-me completamente em Suas mãos. Sinto-me tão pequeno ante Sua grandeza. Ajuda-me em minhas fraquezas. Hoje, pela primeira vez em minha vida, sinto a Sua Paz. Obrigado por ter me escolhido para perceber Sua criação. Eu aceito ser a Oferenda. Amém.

2. A Solidão

— Hoje você vai aprender a usar a solidão a seu favor. – Diz o guia enquanto assa alguns biscoitos. Este é o segundo dia do rapaz na companhia de Álih. Ele acordou renovado, e parece ansioso para as lições. Levantou-se antes do dia amanhecer, fez suas preces, preparou o café e agora se senta à mesa. O velho morde o biscoito e toma um gole de chá antes de falar: — Às vezes nossos demônios pessoais dizem: ‘‘Você está sozinho!’’ Mas o verdadeiro Guerreiro Mapuche não se importa. Ele Sabe que assim como a terra precisa de repouso a fim de produzir melhor os seus frutos, quem se dispõe a seguir O Caminho Sagrado também necessita de momentos a sós, para recuperar suas energias espirituais. A solidão – como quase tudo em nossas vidas, pode ser uma bênção ou uma maldição. Depende de como iremos conviver com ela. “Alguns a usam como um tempo de meditação e se dizem felizes: ‘Sou grato aos Céus por permitirem que eu tenha este momento especial comigo mesmo’. Estes irão crescer espiritualmente e, quando aparecer alguém para lhes fazer companhia, saberão valorizar cada momento ao lado dessa pessoa. “Outros, todavia, amaldiçoam o dia em que nasceram. ‘Se era para ficar sozinho, melhor seria nem ter vindo a este mundo. A solidão é pior que a morte’, dizem. Estes se tornarão cada vez mais amargos e, quando aparecer alguém lhes oferecendo amor e companhia, estarão tão adoecidos, que não saberão como se relacionar, e a companhia certamente partirá em busca de outro, que saiba lhe amar de verdade.” Jávier sabia muito bem que a solidão não tem absolutamente nada a ver com quantas pessoas estão à nossa volta. Já se sentiu profundamente sozinho na sala de aula cheia de colegas, ou caminhando pelas ruas movimentadas de Santiago, assistindo cada pessoa com quem cruzava e sabia que elas também estavam istrando sua própria solidão. Alguns

olhares tristes, outros apressados, ou amedrontados, confusos, solitários, felizes, sonhadores, esperançosos, frustrados. E em outros momentos em que estava sozinho, ou pescando com o avô no rio Mapocho – acreditem: naquela época o Mapocho ainda dava peixes “comíveis”, e enquanto esperava a boa vontade dos peixinhos, o avô contava as histórias do pai que havia sido herói chileno na Guerra do Pacífico, enfrentando Bolívia e Peru. “Fora uma batalha sangrenta”; contava, como se tais glórias fossem dele mesmo. “Meu pai ajudou nosso país a conquistar Antofogasta, deixando os bolivianos, aqueles idiotas, sem saída para o mar.” O avô morrera bêbado, sem jamais ter feito nada de importante na vida. ou todos os seus anos, ancorado nas histórias do pai. Talvez aquela fosse a única coisa da qual pudesse se orgulhar de verdade. Mas mesmo sem peixes e sem histórias novas, aqueles momentos com o avô pareciam preencher o tempo e a alma do rapaz. — Podemos falar a muitas pessoas ao mesmo tempo, mas só abraçamos uma de cada vez. – disse Álih que agora tinha os dois cotovelos em cima da mesa. – O que falta nos dias de hoje é cumplicidade. Convivemos com muita gente, mas na maioria das vezes não compartilhamos a vida com ninguém. Esta solidão não nos acrescenta nada. — Como vencê-la? Digo: como vencer a solidão? – Questiona Jávier. — É justamente aí que está o erro. – Responde o guia que fita o rapaz. – A solidão não precisa ser vencida. Ela sempre existirá em alguma dimensão, porque só assim damos valor ao privilégio de ter uma boa companhia. — Poucas vezes na vida me senti verdadeiramente acompanhado. – diz o rapaz. — Porque existe uma grande diferença entre fazer companhia e ser companhia. Muitos vêm e vão, percorrendo os caminhos escorregadios de nossas vidas, mas alguns chegam e mudam o cenário. Eles dizem: “Você nunca mais estará sozinho”. Estes são capazes de nos abraçar com mais amor, ouvem nossos dilemas com atenção, e não se cansam de estarem ao nosso lado. Pessoas assim ajudam as nossas almas a encontrarem o descanso. E se algum dia precisarem partir, ainda terá valido a pena.

Porque o amor sempre vale a pena. Porque estas pessoas não apenas fazem companhia, mas vão além. Álih se levanta da mesa e sai da cabana. — Nós precisamos da solidão na mesma proporção que precisamos da companhia. Jávier o fita com olhos desconfiados: — O poeta precisa da lua, da noite e da solidão para que seus versos sejam mais sinceros. É na solidão da tela vazia que o artista encontra a si mesmo e ali deixa pintados os rabiscos de sua alma. No ardor da batalha o guerreiro precisa da força dos companheiros, mas é na solidão que antecede o combate, que ele traça a estratégia que lhe sagrará vencedor. — E Deus – pergunta Jávier. – Ele se sente só? O velho toma fôlego antes de responder: — Houve um tempo, numa época quando o “tempo” ainda não existia, em que Deus habitava só. “No princípio... Deus...” Não existia o céu, onde agora se manifesta a Sua glória. Não existia a terra, que Lhe ocue a atenção. Não existiam os anjos, que Lhe dessem louvor, nem o universo, para ser sustentado por Sua palavra e poder. Não havia nada, nem ninguém, senão Deus; e isso, não durante um dia, um ano ou uma época, mas “desde sempre.” Durante uma eternidade ada, Deus esteve só – completo, suficiente, satisfeito em Si mesmo, de nada necessitando. “Se o universo, os anjos, ou seres humanos Lhe fossem necessários de algum modo, teriam sido chamados à existência desde toda a eternidade. Ao serem criados, nada acrescentaram a Deus em sua essência. Ele não muda, pelo que, essencialmente, a Sua glória não pode ser aumentada nem diminuída. Deus não estava sob coação, nem obrigação, nem necessidade alguma de criar.” — Se Deus não se sentia só, então por que decidiu criar? — Por que embora Ele seja totalmente capaz de realizar-Se em Si mesmo, preferiu dividir Sua existência conosco. – responde Álih. – Hoje você vai

experimentar a “solidão de Deus”.

*

O guia dá a volta na cabana, abre a porta de uma espécie de porão e chama o rapaz. — Entre! — Onde isso vai dar? — Não faça perguntas. Apenas entre. — Imaginei que estava aqui para fazer perguntas. — Não agora. Entre. Jávier segura em uma escada e desce num buraco que lembra a entrada dos bueiros de Santiago. — Está escuro. — Entre! Álih fecha a porta. Lá em baixo, Jávier não consegue enxergar um só milímetro diante de seus olhos. — O que eu faço agora? – grita. — Fique quieto e ouça o seu silêncio. Jávier já havia feito exercícios do tipo e nunca sentiu absolutamente nada. De qualquer maneira não custava tentar. De repente ele começa a sentir o barulho do nada. As árvores não balançavam, nem os pássaros cantavam lá fora. Parecia não existir

pássaros, ou árvores, ou o próprio “lá fora”. O vento não sopra e não se ouve o barulho das águas do rio Áliphen baterem agressivas contra as rochas. Tudo segue absolutamente escuro. Jávier estava acostumado a ambientes não iluminados, mas é normal que os olhos se acostumem à escuridão e, com isso, acaba por torná-la menos poderosa e irredutível. Mas ali a escuridão não dava trégua. Fechar e abrir os olhos não fazia a menor diferença. O nada. A “solidão de Deus”. O vazio absoluto. Não há tristeza! “Assim como a solidão é a condição humana, o Amor é a condição divina”, ele ouve a voz que vem do seu interior. “Até o próprio silêncio tem lá os seus ruídos. Agora não existe mais nada nem ninguém. Só você e a escuridão. Lembre-se: ela é apenas o efeito da ausência absoluta de luz. “O amor precisa da solidão para continuar existindo. Bem-aventurados sejam todos aqueles que não temem a solidão e que não vivem desesperados com algo com que possam se ocupar. Porque só conhece a si mesmo quem é capaz de ter prazer na própria companhia. “Bem-aventurados sejam todos aqueles que não temem o vazio, pois sabem que em suas almas há um universo inteiro para ser descoberto. Estes dizem a si mesmos: ‘sabemos quem somos. E é justamente por isso que podemos avançar sem medo’. E avançam. “Bem-aventurados sejam todos aqueles que não temem o silêncio. Porque aprenderam a ouvir seus corações. Porque sabem que muitas respostas vêm de dentro.” Aquele porão escuro se transformou em um universo inteiro. Vazio. Escuro. Solitário. Ele se perde no tempo. Jávier acorda de uma espécie de transe com o velho abrindo a porta. Ele não sabe precisar quanto tempo se ou desde que entrou. Talvez alguns minutos, talvez algumas horas. Já do lado de fora se senta em uma pedra, chora, e faz uma prece:

Obrigado meu Senhor, pois sei que nunca me deixaste só. Tu és o meu refúgio eterno. Sei que nos momentos mais difíceis da minha vida, lá estavas e me davas força, pacificando minha alma e recolhendo as minhas lágrimas. Sei que sempre estarás comigo. Amém.

3. O Milagre

“Hoje eu estou esperando aquele milagre, Senhor”. Álih, o guia, repete esta mesma prece desde o amanhecer. Enquanto Jávier prepara o café, o velho murmura o mesmo clamor: “Hoje eu estou esperando aquele milagre, Senhor.” — Desde o primeiro dia em que cheguei aqui o senhor está fazendo esta mesma oração dizendo que está esperando aquele milagre, mas ainda não vi absolutamente nada acontecer. Será que Deus está mesmo lhe ouvindo? E afinal, qual é o milagre? – questiona o rapaz. O velho tosse antes de responder: — Estou esperando o milagre da vida – começa. – Espero o milagre do amor, o milagre dos meus olhos enxergarem novamente as montanhas, o milagre do perdão, da fé, o milagre do alimento que se transforma em energia para manter o corpo vivo; estou esperando o milagre da chuva, do sol, da noite que vem, do sono que revigora a vida. O velho se cala por alguns segundos, aponta para algum lugar e volta a falar. — Está vendo tudo isso? Jávier apenas balança a cabeça afirma-tivamente. — É a prova de que Deus tem me ouvido todos os dias. Os milagres estão à nossa volta e você não consegue vê-los por que está buscando o sagrado de uma maneira errada. Não precisamos ter o a fenômenos sobrenaturais para acreditar em milagres. Os maiores milagres estão aqui e podem ser vividos todos os dias. O jovem não diz mais nada. No mesmo instante fecha seus olhos e repete a oração em silêncio: “Hoje eu estou esperando aquele milagre, Senhor.” O guia continua:

— A maioria das pessoas está em busca de manifestações sobrenaturais. Deseja contato com os mortos, quer ver objetos se moverem sem que estejam sendo manejados, busca relacionamento com espíritos que se dizem superiores, mas eu lhe digo: este é um território, muitas vezes, sombrio e perigoso. Da mesma forma que aqui neste mundo há enganadores, no Universo Paralelo eles também estão presentes. Portanto cuide para que o seu desejo pelo sobrenatural jamais seja maior que seu desejo pela verdade. Do contrário estará em perigo. Jávier fica em silêncio. Já ouviu vozes, viu vultos, falou com anjos e nunca soube direito o que isso significava. — Só há um tipo de manifestação sobrenatural que realmente vale a pena: aquela que nos torna seres humanos melhores e nos leva para mais perto da luz. “Devemos crer na intervenção divina. O milagre pode se manifestar através de um refrigério na alma em momentos de crise, ou de uma cura, visão, sinais, encontros impossíveis, uma porta improvável que se abre. Esse tipo de milagre está aí, realmente acontece e se manifesta todos os dias em todas as partes do mundo e com pessoas das mais variadas crenças. E quando acontece enche a todos aqueles que receberam tal graça de fé e gratidão. “Mas o milagre vai além. E, mesmo que não sejamos capazes de notá-lo, porque estamos ocupados demais para seu poder, ou simplesmente por que estamos atrás de grandes feitos e conquistas, enfim – não importa: o milagre estará sempre presente em nossas vidas – mesmo se não percebermos ou itirmos sua presença. “Ele está posto na estrela que se move na imensidão dos céus, na semente que se transforma em árvore, na folha que cai e se transforma em adubo e no adubo que fortalece os frutos; no ar que enche os pulmões, no ânimo que nos encoraja a seguir adiante. Em Maya, e na capacidade que temos de percebê-la. “Que encontremos força e renovo no milagre nosso de cada dia. E quando nossos pés estiverem cansados – e eles sempre se cansam, possamos acreditar no milagre da força interior e, assim, seguir adiante. Certos de que mesmo quando estivermos com medo e cheios de dúvida – o milagre surgirá.

Porque ele sabe ouvir nossos corações. Porque ele entende nossas fraquezas. Talvez em alguns momentos nós digamos: ‘Ajuda-me, Senhor, em minha pouca fé’. E esse ato de humildade será suficiente. Porque o milagre prefere os humildes de coração. E se manifesta, geralmente, na vida daqueles que se consideram menores. “Alguns dizem: ‘existem muitos caminhos para se chegar ao topo da montanha’. Sim, existem. Mas alguns são mais difíceis e perigosos. Assim como todas as manifestações de fé abrem os portais para o Universo Paralelo, mas nem todas conduzem à Luz. “Lembre-se: ao escolhermos um caminho, estamos também escolhendo um destino. “Bem-aventurados aqueles que se abrem para o novo todos os dias e acreditam na bênção do renovo. Estes estarão sempre preparados para o milagre.” Jávier, que até aqui ouviu em silêncio, sinaliza para falar: — O senhor disse que não devemos procurar pelo milagre. — Sim. E não devemos mesmo. Só os tolos fazem isso. Como em um ato de pura caduquice Álih aponta para um frango que ava por ali. — Quero comer frango no almoço hoje. Você é jovem, está com as pernas boas, pegue este para nós. O rapaz esquece a lição e parte para cima da ave. O guia ri enquanto o frango dá um verdadeiro show no aprendiz. Depois de uns 15 minutos, Jávier finalmente desiste. — Ele é rápido demais. – diz praticamente sem fôlego. – Impossível pegar. O velho já tem uma espiga de milho nas mãos. — Agora veja.

Ele começa a debulhar. De grão em grão. Sem gritos ou alardes. Logo aparece a primeira galinha rodeada de pintinhos. Uma franguinha, um galo, um pato, alguns outros franguinhos e, em pouco tempo lá está o frango – ainda um pouco desconfiado. — Não pegue agora. Espere ele se esquecer de você. Não corra atrás, gere o ambiente necessário. Os tolos perseguem. Os sábios atraem. Crie um estilo de vida que seja capaz de atrair os seus milagres. Em um golpe certeiro o moço pega o frango pelo pé e entrega ao guia.

*

— Qual é o milagre que você deseja receber agora? Temos um ambiente de fé perfeito. Os portais estão abertos. Vamos. Peça. — Quero que não seja mais necessário usar óculos. – diz Jávier sem pensar. O velho solta o frango, cospe no chão, faz lama, tira os óculos do rapaz e a a pasta em ambos os olhos. — Agora desça ao rio Áliphen e se lave. O guia vai segurando-o pelo braço. Quando chegam Jávier ajoelha-se diante do rio, enche suas mãos e lava o rosto com a água gelada. Quando abre os olhos vê que do outro lado do rio está um portal e, dentro dele, duas realidades: uma de sombras e a outra de luz. “A Luz!” Do lado escuro o rapaz não vê absolutamente nada. Já do lado iluminado está um anjo que lhe olha fixamente sem dizer uma única palavra. O guerreiro celestial traz uma espada na mão direita e veste-se de branco. O aprendiz fecha os olhos, mas a imagem persiste. — Eu ainda não estou preparado. – grita desesperado imaginando, talvez, que sua hora tivesse chegado. – Tenha piedade do teu servo.

— Quem te espera do outro lado do rio Áliphen? – pergunta o velho. — Um anjo. — Não quer ir agora? — Não, senhor! – Ele responde com as pernas tremendo de medo. O guia a novamente a mão em seu rosto e o portal desaparece. — Ele continua te esperando do mesmo jeito. Só que agora você não pode mais vê-lo. O rapaz se enche de um temor jamais vivido. “O milagre é real”. Ambos sobem e o frango está parado exatamente no mesmo lugar onde Álih havia lhe deixado. — Espere aí. Como fez isso? O velho sorri. — Você acabou de ver a porta do Céu e a do Inferno e ainda duvida de alguma coisa? Com estas pernas tremendo você não seria capaz de perseguilo e eu não quero gastar mais espigas hoje. E sua visão? — Vejo perfeitamente, não preciso mais de óculos! Era hora de entrar na cabana e comer ensopado de frango temperado com milagre. O rapaz curva a cabeça e faz sua prece:

Hoje me sinto ainda menor ante Sua grandeza, Senhor. Guia-me para que eu jamais me perca do Caminho, da Verdade e da Luz. Seja meu guia, meu sustento e meu milagre de cada dia. Que eu esteja preparado quando, finalmente, o Teu anjo disser: chegou a sua hora. Amém.

4. O Equilíbrio

O dia anterior havia sido intenso e cansativo. Jávier recebera seu milagre, viu o anjo e comeu ensopado de frango. Hoje acordaram cedo, já tomaram café e estão em silêncio meditando. De repente alguém bate palmas. O rapaz se levanta e caminha até a porta. Lá está um homem grisalho, de aproximadamente 60 anos. — Santo homem. – Fala ele sem maiores cumprimentos se dirigindo ao guia, não dando importância à presença de Jávier. – O que devo fazer para aproximar-me de Deus? O velho sorri. — Divirta-se. – Seu tom é radiante. – Louve ao Criador com sua alegria, procure festas, arrume uma namorada – sei lá. Permita-se ser feliz. Este, certamente, é o caminho para encontrar-se com Deus. O homem sai sem se despedir. Os dois continuam com a meditação. Vinte minutos depois alguém volta a bater palmas. Jávier vai até a porta e lá está um jovem, possivelmente de sua idade. — Santo homem. – seu tom é vigoroso e empolgado. – O que devo fazer para aproximar-me de Deus? O velho fecha a cara. — Jamais se divirta. Fuja das festas e das mulheres. Leve uma vida de sacrifícios e renúncias. Seja rígido, ríspido e rigoroso consigo mesmo. Esse, certamente, é o caminho para encontrar-se com Deus. Quando o jovem sai, Jávier repreende o guia. — Não me parece honesto dar respostas diferentes a perguntas iguais.

O velho sorri. — Não é honesto dar respostas iguais a pessoas diferentes. – Ele diz. – Nem um dos dois irá seguir meu conselho à risca. O homem de meia idade já está perdendo as forças, não tem muito ânimo, talvez minhas palavras motivemno a se alegrar nestes seus últimos anos. Já o rapaz está cheio de energia, com isso, pode cometer exageros. Talvez minhas palavras ajudem-no a se equilibrar. Assim, com um pouco de sorte, ambos encontrarão o bom-senso. O rapaz fica em silêncio. Sabe que bom-senso vai muito além da capacidade de distinguir o certo do errado. Ele está diretamente ligado à capacidade intuitiva do ser humano de fazer a coisa certa, e isso, independente de suas crenças religiosas, escolaridade ou cultura. — O bom-senso é uma sabedoria interior adquirida por todos aqueles que aprenderam a perceber o outro – continua o velho. – E assim, aprendem também a respeitar seus espaços e seus limites. Bom-senso é a medida de quem decidiu amar e, por isso, convive bem com cada pessoa que cruza seu caminho, pois sabe respeitar as diferenças. “A pessoa que permite ser guiada pelo bom-senso sabe que não veio a este mundo para julgar o outro. Antes, oferece sempre o perdão. Porque se lembra da prece que faz todas as manhãs: ‘Perdoai Senhor, as nossas ofensas, assim como nós perdoamos a quem nos tem ofendido’. “Quem decidiu viver na medida do bom-senso sabe que a paz é sempre a melhor medida. Por isso não procura conflitos desnecessários. Quando é perseguido prefere olhar o provocador com misericórdia. ‘É só uma alma carente em busca de atenção’, diz em uma prece. ‘Perdoai, porque não sabe o que faz’. “E assim busca viver com equilíbrio, alimentando os relacionamentos saudáveis, tentando salvar os desgastados e enterrando, com dignidade, aqueles que já morreram. Porque seguir adiante com relacionamentos mortos é como carregar um cadáver nos próprios ombros. “Quem decidiu viver com bom-senso não se deixa cair na tentação do fanatismo. Porque sabe que ‘ai daqueles que escolheram a indulgência para si mesmos e tecem julgamentos rigorosos contra seu próximo. Estes, certamente, serão julgados com a mesma medida’.

“Ai daqueles que escolheram se entregar às suas paixões, não colocando limites sobre si. Estes, certamente, entregarão suas almas à maldição da culpa. “Bem-aventurados sejam todos aqueles que escolheram caminhar pelo chão da vida com boa consciência, procurando não ferir aos outros, nem a si mesmos. Estes, certamente, terão vida abundante agora e no porvir. “Bem-aventurados sejam todos aqueles que não usam suas espadas a fim de gabarem da força que possuem e sabem viver de maneira discreta e respeitosa. Estes, certamente, já venceram o combate, mesmo que jamais tenham utilizado suas armas. “Bem-aventurados sejam todos aqueles que sabem preservar as verdadeiras amizades e que não agem com egoísmo. Estes, que respeitam seus amigos, não arão seus últimos dias sozinhos. Porque o universo sabe retribuir as sementes que plantamos. Porque quem cuida de um amigo, mesmo que não espere nada em troca, na verdade, está cuidando de si mesmo. “Estamos em busca do caminho do meio. Afinal, como diz o ditado: moldase o barro para fazer um vaso; é o espaço dentro dele que o torna útil. Fazem-se portas e janelas para um quarto; são os buracos que as tornam úteis. “Sejamos como a água que aprendeu a ceder e a ser flexível. Se tem uma rocha em seu caminho, sabe contorná-la a fim de continuar sem interrupções. Ela não tem tempo nem energia a perder, discutindo com rochas ou galhos. “Em alguns momentos nossa alma se irrita com as provocações e, então, ameaçamos tirar satisfação. É quando o bom-senso nos chama e diz: ‘Não vale a pena. É melhor relevar e seguir adiante’. “Só é possível alcançar o bom-senso em sua plenitude quando atingimos um equilíbrio entre as estruturas física, emocional e espiritual. “O verdadeiro Guerreiro Mapuche sabe que equilíbrio só se atinge com maturidade; e que isso não tem necessariamente ligação com a nossa idade. Quanto mais somos capazes de assimilar as experiências às quais somos submetidos, mais amadurecemos.

“Não devemos cultivar a falsa ideia de que um dia seremos plenos. Sempre haverá algo em nós a ser trabalhado. Seja nas emoções, na generosidade, no amor, na ética, no comportamento – sempre haverá algo a evoluir. E também não devemos acreditar que exista alguém tão perdido em si mesmo que não possa ser alcançado pelo Amor Supremo.” “Há aqueles que dizem: ‘não há mais salvação para mim’. Mal sabem estes que, a qualquer momento, podem ser alcançados de maneira súbita pelo Amor. E o amor equilibra nossos os. Conduz-nos aos pastos verdejantes do Caminho Sagrado onde seremos guiados mansamente a águas tranquilas. E ali, a alma antes agitada e encharcada de culpas, alcançará refrigério e Paz. Então, os os antes perdidos, agora encontrarão justiça.” “E estes, que alcançam ou são encontrados pelo Amor Supremo, são salvos de todos os perigos visíveis e invisíveis e, mesmo que caminhem pelo vale da sombra da morte, não precisam temer. Porque o Amor Supremo está neles. Porque são alcançados continuamente por bondade e misericórdia.”

*

Quando terminaram os exercícios a noite já havia chegado. — Prepare o jantar. – ordenou Álih com aparente irritação. – Quero comer sopa hoje. A noite estava mais fria do que as anteriores. O tempo fechado não deixava claro se cairia chuva ou neve. Álih pega a água que já estava sendo aquecida e despeja na bacia a fim de tomar banho. Cerca de 40 minutos se am até que ele se lave, troque de roupas e reapareça na cozinha. Quando Jávier vai tirar a a de sopa da fornalha o guia espiritual se aproxima:

— Você é o pior de todos os alunos que já aram por aqui. – diz em tom arrogante. O rapaz não responde nada. Parece não se entristecer com o ataque. Nem mesmo sabia que outros alunos já haviam ado por ali. — Seu raciocínio é lento. – continua. – E além do mais, está sempre desatento, tem memória ruim e já vi você deixar as coisas caindo. O aprendiz caminha até a mesa com a a de sopa, serve primeiro o prato do mestre, depois o seu, e então finalmente responde: — Não é justo. – começa o jovem pegando duas colheres. – Eu vi seu plano de aulas e já sabia que iria me afrontar na hora do jantar para ver se eu deixaria o prato de sopa cair. Estamos estudando equilíbrio hoje e sei que queria testar-me a fim de saber se consigo me controlar quando sou desapontado. O mestre abre um sorriso. — Eu não faço planos de aula. Deixei aquele papel cair de propósito. Estamos de folga amanhã. Iríamos estudar sobre honestidade, mas como você já aprendeu também esta lição – estamos liberados. Os dois se calam. É hora de comer uma sopa temperada com equilíbrio e honestidade. O rapaz curva a cabeça e faz sua prece:

O Senhor é o meu pastor, nada me faltará. Deitar-me faz em verdes pastos, guia-me mansamente a águas tranquilas. Refrigera a minha alma; guia-me pelas veredas da justiça, por amor do seu nome. Ainda que eu andasse pelo vale da sombra da morte, não temeria mal algum, porque tu estás comigo; a tua vara e o teu cajado me consolam. Preparas uma mesa perante mim na presença dos meus inimigos, unges a minha cabeça com óleo, o meu cálice transborda. Certamente que a bondade e a misericórdia me seguirão todos os dias da minha vida; e habitarei na casa do Senhor por longos dias. Amém.

5. O tédio

Como prometera na noite anterior, Jávier cancelou as atividades do quinto dia. Iriam estudar sobre honestidade, mas o rapaz já se mostrara preparado neste quesito. Acordaram um pouco mais tarde que o de costume, fizeram a primeira refeição, Jávier foi até o rio Áliphen e assistiu o mover de suas águas por alguns minutos, depois voltou, varreu e recolheu algumas folhas que caíram das árvores durante a noite, olhou para as montanhas e, antes do almoço, já havia descoberto que aquilo que deveria ser uma bênção, acabou se tornando uma maldição. — Preciso de algo para fazer. – pediu. O guia que cochilava tranquilamente em uma rede amarrada nos galhos de duas árvores se levanta. — Só é capaz de realizar muito, quem também é capaz se manter-se realizado quando não está realizando nada. O corpo só descansa quando a alma está em paz. Permita-se, sem culpa, ocupar-se com o nada. Ai daqueles que só podem ser felizes quando estão se movendo. — Eu sinto tédio. – disse o rapaz. — O tédio, na verdade, é seu interior pedindo: “Não pare nunca, porque quando você parar seremos obrigados a meditar sobre nossa real condição existencial”. “É por isso que algumas pessoas não conseguem se aquietar. Estão sempre em busca de alguma coisa para fazer. Suas almas são desinquietas, sentemse culpadas quando não estão produzindo – sem se atentarem de que não há nada mais produtivo do que a busca por uma consciência livre de culpas. “Estes, muitas vezes, são capazes de acumular fortunas, realizam projetos grandiosos, conhecem pessoas e lugares magníficos – mas nunca têm tempo

para conhecerem a si mesmos. “Bem-aventurados aqueles que respeitam o ‘tempo de calar’. Porque é quando nos aquietamos e nos calamos que somos capazes de ouvir nossos corações. Porque geralmente é quando não estamos fazendo nada do lado de fora que somos reconstruídos do lado de dentro. “De vez em quando o Amor Supremo nos diz: ‘Aquietai-vos’. Alguns se aquietam, respeitam a Sua voz e são agraciados com O Milagre. Outros dizem: ‘Não acreditamos em milagres. Estamos ocupados construindo nossa própria sorte’. Não sabem estes que, de todas as riquezas, as que mais valem são aquelas que construímos dentro de nós. “Todo mundo, pelo menos uma vez já se perguntou: ‘O que eu realmente quero fazer da minha vida?” Ninguém está absolutamente certo sobre suas escolhas. ‘Casar, não casar; estudar este ou aquele curso; trabalhar nesta ou naquela empresa; mudar de casa ou reformar a atual?’. O descanso da alma nos leva a pensar melhor nas escolhas que ainda podemos fazer e naquelas que já foram feitas e dificilmente poderão ser alteradas. ‘Será que me casei com a pessoa certa?’, perguntam alguns. ‘Esta realmente é a profissão com a qual eu tanto sonhei?’, questionam outros. “Para algumas pessoas tornou-se tarde demais para fazer estas perguntas. E aí, mais atividade, mais trabalho, mais barulho e movimento. Sem nos atentarmos de que quanto mais agitação menos reflexão. “Há tempo para todo propósito debaixo dos Céus. Tempo de nascer e de morrer. E todo o resto só pode ser realizado dentro desta fatia. Devemos entender que já houve um universo sem nós e, um dia, ele seguirá sem nós. Brilhemos enquanto estivermos aqui. E acredite: a luz não faz o menor esforço para brilhar. Porque está em sua natureza. Porque esta é sua missão. Mas até o sol e a lua sabem que precisam descansar e dar lugar para que o outro reine. Até Deus descansou e teve o seu sétimo dia.” “Chega o momento em que o viajante precisa parar a fim de refletir sobre seu caminho. Lembrar-se da paisagem que ficou para trás, das subidas e descidas que enfrentou, analisa quais atalhos valeram e quais não valeram a pena, e tudo isso faz com que nas próximas milhas os seus os rendam mais. Ele diz aliviado: ‘tropecei e até caí. Mas agora me sinto mais forte

porque sei reconhecer melhor os meus limites’. “Mas alguém está cruzando aquele mesmo caminho. O outro viajante lhe vê parado e comenta: ‘ele tem os largos, mas descansa muito. Deveria concentrar-se mais na estrada e não perder tanto tempo com devaneios’. Este, certamente será encontrado exausto e confuso em algum ponto da estrada. “Devemos reconhecer o valor da trégua. Mesmo estando em vantagem no combate, às vezes devemos recuar. Alguns companheiros não compreenderão. ‘Só pode estar louco’, dirá alguém. ‘Não faz sentido nos afastarmos do combate quando estamos quase vencendo’. Mas o verdadeiro Guerreiro Mapuche sabe que é melhor recuar quando se está em vantagem. ‘Porque assim levaremos o adversário a imaginar que está em vantagem. Desta maneira poderemos aprender com os erros dele, e não com os nossos’. “Quando estamos bem com nossas emoções e em sintonia com as dimensões espirituais positivas que nos cercam, podemos vencer o tédio sem ativismos. Só assim poderemos conhecer melhor a Alma do Mundo. “Todos os homens e mulheres que caminham embaixo dos céus devem ter uma ocupação digna. Mas precisam ser capazes de manterem a paz de espírito quando estiverem em seu momento de descanso. “A grande maioria das pessoas a o dia todo em estado de movimento frenético. Dá telefonemas, assina papéis e realiza negócios. Cada um em seu próprio universo: o médico com o plantão no hospital, o advogado que a horas intermináveis no tribunal, a professora que enfrenta várias turmas por dia, o motorista com o trânsito infernal, o cabeleireiro, a garçonete, a psicóloga – tão precisa e confiante quanto os conflitos de seus pacientes e tão incerta em relação aos seus próprios, enfim. Torce para que as horas em rápidas a fim de chegar às suas casas, mas quando chega, sente-se culpada e pensa: ‘O que estou fazendo aqui?’ e, assim, mais telefonemas, mais papéis, mais negócios. Não consegue dar descanso ao seu corpo e à sua alma. Quando está no trabalho deseja estar em casa, e quando está em casa, deseja estar no trabalho. Tem arco-íris, falta-lhe tempestades. Possui brisa, quer furacões; se tem paz, busca emoção. Bendita vida. Maldita insatisfação.

“Bem-aventurados aqueles que são capazes de contemplar o pôr-do-sol sem culpa e sem pressa. Que tiram tempo a fim de caminharem de mãos dadas com o seu amor e que não vivem irritados e com a sensação de que estão sempre atrasados. Estes, certamente encontrarão descanso.” O tempo estava nublado e úmido. Dentro de poucas horas iria chover. Álih pega um carrinho de mão, vai até a bica de água e enche com algumas mudas de pinus que estão ali perto. — Vamos aproveitar o tempinho com jeito de chuva para plantá-las. – diz o velho. São resistentes ao inverno que está se aproximando. — Estas árvores demoram uns 40 anos para se tornarem adultas. – diz o rapaz. – Não vejo sentido em plantá-las. O velho, que já pegou a enxada e começou a fazer covas, se mantém em silêncio por alguns segundos como que procurando a palavra exata. O rapaz volta a falar: — Eu não vou ficar aqui por muito tempo, estou a poucos dias da minha partida. O senhor já é velho, provavelmente não irá viver muito. Deveríamos plantar algo com o qual pudéssemos nos beneficiar. O velho finalmente para de dar as suas enxadadas e fita o rapaz. — Quando viemos parar neste mundo ele já possuía árvores grandes, montanhas altas e rios cheios de peixes. Não tivemos que fazer o menor esforço por tudo isso. O velho toma fôlego antes de prosseguir: — Provavelmente não estaremos mais aqui quando estes pinus crescerem, mas de alguma maneira recompensaremos a vida por ter sido tão generosa para conosco. O pior dos homens é aquele que lança sementes pensando apenas em si. Que nossas mudas cresçam e se transformem em árvores. Que elas sejam o sinal de boas-vindas àqueles que ainda arão por aqui. “Felizes os que fazem o bem sem a necessidade de deixar pegadas. O universo recompensará tudo que realizarmos. Felizes aqueles que dizem: ‘lancei as sementes, a chuva regou, o tempo fez crescer e, embora eu jamais

tenha sentido o gosto de tais frutos, sinto-me realizado por cumprir o meu dever. “Os melhores seres humanos são aqueles que fazem o bem sem nunca terem a necessidade de dizer: fui eu!” O rapaz abaixa a cabeça e, envergonhado, começa a cavar. Talvez tenha percebido que o seu crescimento tem sido mais lento que o do pinus, mas mesmo assim ainda há alguém ali, regando seu coração e esperando seus frutos.

*

Depois de cerca de uma hora já haviam terminado de plantar as mudas. — Deite-se na rede onde eu tiro meus cochilos. – disse o guia. O rapaz, que agora tinha o corpo exausto por causa do trabalho se deitou. — Agora tente respirar fundo. O rapaz respira. — Mais fundo. Você não tem absolutamente nada com o qual precise se preocupar. Deixe sua alma livre. Permita que ela entre em conexão com a Alma do Universo. Jávier sente seu corpo descansar e ele começa a dormir. — Deixe sua alma livre. Permita que ela entre em conexão com a Alma do Universo. Ele ouve o guia repetir com sua voz que agora parece fraca e distante, até que apaga completamente. Em seu cochilo Jávier tem um sonho. As árvores que acabaram de plantar

estão enormes. Talvez os 40 anos tenham se ado. Um homem caminha até o pé de uma delas com um machado nos ombros. Um casal de crianças que talvez tenha no máximo entre cinco e sete anos segue o homem que dá a primeira machadada. — Quem plantou estas árvores, papai? – Pergunta a garotinha. O homem para, olha dentro dos olhos da menina que usa um vestido branco e diz sorrindo: — Eu não sei minha filha. Mas é com estas árvores que iremos construir a nossa casa. Certamente foi alguém que aprendeu a ser grato à vida. Espero que ele tenha sido capaz de aproveitar cada segundo do seu trabalho e de seu repouso. Cortaremos estas e plantaremos outras no lugar. – disse ele dando as costas à menina e voltando às suas machadadas. Foi com o barulho do machado que Jávier acordou. Ele senta-se na rede, olha em volta procurando as crianças, mas não encontra nada. Álih, o guia, está com o machado rachando a lenha que acenderá o fogo onde aquecerá a água e farão o jantar. Quando o guia percebe que o rapaz acordou, levanta a ferramenta e dá um sorriso. Jávier curva a cabeça e faz uma prece:

Não sei por quantos anos ainda estarei aqui neste mundo. Mas uma coisa eu lhe peço, meu Senhor: que enquanto estiver e por onde ar, eu lance boas sementes. Arranque todas as agonias de minha alma e que eu encontre, todos os dias, o Teu repouso. Amém.

6. A Repetição

Mais uma manhã. A chuva que caíra ininterrupta nas últimas 12 horas agora provavelmente daria uma trégua duradoura. Um sol tímido ameaça aparecer e o guia decide aproveitá-lo para rachar mais lenha, a fim de colocá-las para secar. Álih agacha próximo a uma pedra de amolar e começa a afiar lentamente o seu machado. De tempo em tempo parava e ava o dedo no corte para ver se já estava bom. Em poucos minutos ele se levanta, olha para a ferramenta com contentamento e suspira uma espécie de “agora sim”. O rapaz observa de perto. — Hoje quero lhe ensinar três os que são necessários para que, aqueles que decidiram seguir O Caminho Sagrado, alcancem a perfeição. O velho agora coloca o machado de lado, senta-se na grama e fita o rapaz. Jávier faz o mesmo: — Primeiro: toda perfeição começa no campo da observação. Bons observadores têm grandes chances de fazerem com excelência aquilo que se propem. Como estudante de medicina Jávier sabia bem a importância disso. Às vezes ava horas a fio assistindo seus professores deslizando bisturis, retirando órgãos de corpos abertos e recolocando no lugar. — Portanto. – continuou o guia. – Gaste o tempo que achar necessário com a observação. Observe as pessoas, seus comportamentos, o clima, a criança que brinca na praça, o idoso que cochila em sua cadeira de balanços; observe a beleza da flor e o milagre de seu desabrochar. A vida está bem diante de nossos olhos. Mas muitos am por ela sem que sejam capazes de perceber a sua beleza. “Observe o olhar das donzelas tagarelas e risonhas no mercado da vila, e em

como se alegram com sua chegada e no jeito truculento do pai delas, que se irrita por saber o que está acontecendo.” Jávier sorri. “Observe com atenção o rio Áliphen quando se colocar diante de suas águas, pois elas jamais arão por ali novamente. Cada cena no Universo é única. Se você fechar e abrir os olhos, aquelas montanhas à nossa frente já não serão mais as mesmas. Um pássaro diferente estará cruzando os céus que lhe servem de pano de fundo, um pedaço de gelo terá se desgrudado de seu pico. Enfim tente se concentrar na observação.” O velho se coloca de pé, segura seu machado e caminha até o toco onde racha a lenha. O rapaz lhe acompanha de perto. — Coloque uma tora para mim. – Pede o guia com gentileza. O rapaz posiciona a tora, se afasta um pouco, mantém seu olhar fixo no velho, depois no machado e, finalmente na tora. Perfeito. Ela vira dois pedaços idênticos, como se tivessem sido medidos de maneira milimétrica. Mais uma, e mais uma, e outras dez. Perfeito. — Parece-me fácil. – diz o rapaz em tom desafiador. — É. Parece. — Me e a ferramenta? — Claro. A tora está posicionada, o rapaz morde a boca enquanto segura o cabo do machado com as duas mãos. Levanta o mais alto que pode, fecha os olhos e... A tora vai parar a uns quatro metros de distância, intacta. Álih faz uma careta estranha e parece se esforçar para não rir. — Eu vi como você faz, o machado pegou na madeira, coloquei toda a minha força, que diabos aconteceu? — Vamos para o segundo o. – propôs o guia com voz segura. – A teoria, ou a observação, é indispensável em nossas vidas, mas jamais será capaz de

substituir a experiência. “Portanto, não tenha medo de errar. Alguns dizem: ‘eu não quero correr o risco de me parecer ridículo’. Estes arão os anos observando debruçados na janela, em absoluta segurança. Jamais sofrerão com a tristeza da derrota, tampouco poderão comemorar alguma vitória. “O verdadeiro Guerreiro Mapuche entende que no ciclo da vida não existe derrota ou vitória, mas apenas movimento. É na ação, na prática da vida – que vamos encontrando a melhor maneira de existir. “Na decisão de oferecer o perdão a alguém que nos ofendeu, ou na humildade de pedir perdão quando erramos. Não existem derrotados ou vencedores. O movimento é constante. “Às vezes o combate é interrompido em um momento em que estamos em desvantagem. Aí tememos a reação das pessoas, sentimos pesar sobre o que dirão a nosso respeito e, tristes, diremos a nós mesmos: ‘Sou um fracasso. Fui desatento, não observei os detalhes e acabei derrotado’. Mas aí o Amor Supremo envia alguém até a tenda de nossos lamentos: ‘O combate ainda não acabou’, diz. ‘Retome seu posto e lembre-se: o resultado anterior te obriga a vencer desta vez’. Então nos levantamos e partimos para o campo de batalhas. O medo continua, mas é preciso agir. “Só há uma coisa que nos transforma de fato em derrotados: a desistência. O Guerreiro Mapuche sabe que cada golpe equivocado e desajeitado em seu machado foi necessário. “Jamais se encontrará um grande guerreiro sem cicatrizes. Ninguém se torna maduro sendo preservado. É necessário ar pela dor. É necessário encarar o abandono. Porque é assim que os melhores seres humanos são forjados. Sofrem sem perder a doçura. São derrotados, mas não esquecem a gratidão. Sabem que um dia esta dor que agora parece inável, será apenas histórias que poderão contar àqueles que desejarem ouvir.” — O que quer que eu faça agora? – pergunta o rapaz. — Quero que rache todas estas toras. – disse o velho apontando para um monte razoável de madeira. Só depois poderei ensinar-lhe o terceiro o.

O guia entrou na cabana a fim de fazer o almoço. Jávier começa sua luta com o machado e com as toras. “Não tenha medo de errar”, dissera Álih. “Você precisa do erro para atingir o próximo estágio.” Depois de buscar o mesmo tronco por várias vezes, finalmente conseguiu dividi-lo ao meio. O segundo foi mais fácil. Errou novamente no terceiro. Os braços começam a doer. Um pouco de descanso. “O descanso”. Ele volta mais concentrado e faz aqueles gestos com certa intimidade como se fosse algo que estivesse redescobrindo e não aprendendo. A quarta tora, a quinta, a sexta. “Matuke!” — Aprendi! — Muito bem. – Responde o guia saindo da cabana. – Iremos começar nossa lição. “O problema é que a maioria das pessoas para nesse estágio. Orgulhosas elas dizem: ‘aprendi’. E a partir daí deixam de lado seus machados e só voltarão a se lembrar deles quando precisarem novamente. Existe algo após o aprendizado: a perfeição. “E acredite: seja o médico com seu bisturi, ou o arqueiro com suas flechas, ou o pedreiro em sua obra – a perfeição só virá através da repetição. “Bem-aventurados sejam todos aqueles que aprendem que um pequeno gesto pode nos denunciar. Por isso pensa nos detalhes, aprimora sua técnica e a repete até que se torne intuitiva. “Assim, depois de muito praticar, já não pensamos mais em todos os movimentos necessários: eles am a fazer parte de nossa própria existência. Mas para isso, é preciso treinar, repetir. E como se não bastasse, é preciso repetir e treinar. “Pense agora em um bom ferreiro trabalhando o aço. Para um olhar qualquer, ele está repetindo as mesmas marteladas. Mas quem conhece do ofício, sabe que cada vez que ele levanta e desce o martelo, a intensidade do golpe é diferente. “A mão repete o gesto, mas à medida que se aproxima do ferro, ela compreende se deve tocá-lo com mais dureza ou mais suavidade. Assim é

com a repetição: embora pareça a mesma coisa, ela é sempre diferente. “Já reparou nos moinhos? Para quem olha suas pás desatentamente, ele parece girar com a mesma velocidade, repetindo sempre o mesmo movimento. Mas aquele que conhece os moinhos sabe que eles estão condicionados ao vento, e mudam de direção sempre que for necessário. “A mão do ferreiro foi educada depois que ele repetiu milhares de vezes o gesto de martelar. As pás do moinho são capazes de se moverem com velocidade depois que o vento soprou muito, e fez com que suas engrenagens ficassem polidas. “O arqueiro não se importa que muitas flechas em longe do seu alvo, porque sabe que só irá alcançar o tiro perfeito, depois que repetir seus gestos milhares de vezes. E os verdadeiros amigos jamais o criticarão, porque sabem que o treinamento é necessário, e é a única maneira de aperfeiçoar duas forças imprescindíveis: instinto e golpe. “Em sua profissão, a medicina, você irá se relacionar com milhares de pessoas com histórias parecidas. Nunca deixe de ver cada caso como único – como únicas são as machadadas do lenhador, as marteladas do ferreiro ou as flechas lançadas pelo arqueiro. “Repita os gestos. Aprimore a sensibilidade. Trabalhe a intuição. Ofereça-se como sacrifício. O Amor Supremo te fortalecerá.”

*

Jávier pega o machado e começa a dar golpes lentos. Sente melhor o cabo em sua mão, ao mesmo tempo em que controla a respiração e assiste à tora à sua frente. Uma hora se a. A lenha rachada aumenta na medida em que o monte de madeiras

desaparece. Álih, que havia desaparecido há um bom tempo, surge diante de seus olhos trazendo um vidro com óleo. — Pare de golpear e curve a sua cabeça. O rapaz obedece. O guia derrama o óleo perfumado que escorre pelos cabelos lisos do rapaz, descendo por seu pescoço e peito. De repente, do nada, ele a a chorar convulsivamente. “Você é um dos Meus filhos amados”, ele ouve uma Voz dizer. “Que Eu encontre prazer em todos os seus caminhos embaixo dos céus”. Ele sai do transe com um pombo voando baixo, próximo à sua cabeça. — Vamos, o almoço está pronto. – disse o guia batendo de maneira amigável em suas costas. Já é tarde, ele está morrendo de fome. Ao colocar a comida na boca o rapaz suspira. — Que sabor é esse? Perfeito! Onde aprendeu a cozinhar assim? O velho sorri. — Repetição. Jávier curva sua cabeça e faz uma prece:

Hoje, pela primeira vez em minha vida, pude ouvir a Sua voz. Tenho tantos erros, sinto-me tão incapaz. Mas quero ser guiado por Ti. Sinto-me amado e protegido. Obrigado porque, embora sejas imensuravelmente grande, ainda lembra-Se de nós. Amém.

7. A Sabedoria

A rotina entre as montanhas estava sendo basicamente assim: Álih e Jávier se levantavam antes do sol nascer, faziam suas orações, quebravam o jejum e durante a manhã praticavam a lição específica daquele dia e, à tarde, revezavam entre as tarefas diárias, como cuidar dos animais, fazer a limpeza da cabana e do quintal, regar as plantas e atender às pessoas que se dirigiam ao guia à procura de conselhos. Mas na tarde anterior, Jávier notou algo que lhe deixou desconfiado. Várias pessoas se dirigiram até lá em busca de conselhos, mas o guia deu exatamente a mesma resposta a todos que foram até ele: — Vá e siga os desígnios de seu coração. – dizia. Jávier começou a pensar que talvez estivesse sendo ensinado por um homem de má-fé. — O que o senhor está fazendo? – Questiona indignado. – As pessoas lhe pedem conselhos completamente diferentes e lhes dá respostas sempre iguais!? O velho sorri. — Estas pessoas não atravessaram as montanhas para aprenderem absolutamente nada. – Começa ele. – Elas já estão decididas sobre o que irão fazer. Já têm as receitas, mas vieram buscar bolo preparado. Se eu lhes disser o que estão decididas a fazer, irão começar a se acharem sábias demais, e desprezarão meus ensinamentos. Caso eu diga que estão erradas e o que devem fazer, não irão obedecer, já estão decididas e também desprezarão meus ensinamentos. “Ninguém aprende sobre a sabedoria visitando sábios de vez em quando. A sabedoria deve ser buscada em todos os momentos, e é ouvindo a voz do coração, errando e acertando, sofrendo as consequências de cada erro e acerto, que ela vai sendo construída em nós. Seria muito cômodo às pessoas

virem até aqui e saírem com todas as respostas. Desta forma, jamais iriam crescer.” — E o que é a sabedoria? – Pergunta o rapaz. — Alguns definem a sabedoria como a com-preensão avançada que uma pessoa tem de um assunto específico. Sabedoria é a capacidade de perceber, com clareza, o mundo que nos cerca. “A sabedoria está no guerreiro que percebe a falha no golpe do adversário e consegue tirar proveito de tal deficiência; na dona de casa que sabe discernir a alma de seu lar a fim de protegê-lo e é capaz de perceber qualquer alteração no comportamento do esposo, dos filhos ou dela mesma; no lenhador que sabe escolher a árvore certa para construir sua nova morada; no pescador que usa a isca correta para atrair o peixe que deseja alcançar; no agricultor que conhece as estações e sabe respeitar a força da lua e do tempo; no pastor que guia seu rebanho em busca de pastagem e na capacidade de discernir a necessidade de cada ovelha; no ancião que conta histórias e nos olhinhos atentos da criança em seu colo; no barqueiro que desafia o mar sem menosprezar o seu poder e acaba por alcançar o seu destino, e no viajante que é capaz de caminhar e perceber a beleza da paisagem que lhe cerca ao mesmo tempo. “Bem-aventurados sejam todos aqueles que buscam a sabedoria, pois ela é algo tão bom quanto uma valiosa herança, e é uma bênção para todos quantos vivem debaixo do sol. “Alguns dizem: ‘nós estamos em busca de riquezas’. Estes, certamente, chegarão a seus últimos dias sem discernir o verdadeiro sentido de suas vidas. “Outros, no entanto, pedem respostas. Estes, muitas vezes entram em conflitos, brigam com os céus, questionam a bondade da vida, mas terminam sendo saciados. Eles dirão: ‘tivemos que enfrentar nossos próprios destinos, mas recebemos a bênção. Encontramos um tesouro enterrado no campo. Vamos escondê-lo’. Então, transbordando de alegria, vão, vendem tudo o que têm, e compram aquele terreno. Assim também são todos aqueles que encontram a sabedoria. “Buscam e terminarão encontrando. Batem e certamente lhes será aberto.

Pedem e terminarão por receber tal graça. Estes jamais deixarão de evoluir. Porque a sabedoria lhes ensinou a importância da humildade. Porque estão dispostos a aprender o tempo todo, inclusive com as coisas mais simples. “Foram libertos pela sabedoria e aprenderam que não precisam provar mais nada a ninguém. Eles dizem: ‘seguiremos o caminho de nossas consciências. Não vivemos para impressionar aos outros, nem somos escravos daquilo que eles pensam. Escolheremos cada o de nossos pés e cada palavra de nossos lábios de acordo com aquilo que acreditamos. Jamais entraremos em conflitos desnecessários, não perderemos tempo com aquilo que não vale a pena, nem tocaremos em assuntos relacionados a problemas se tais palavras não puderem ajudar a resolvê-los. A vida é breve e estamos em busca de coisas nobres. É por isso que a mediocridade não nos interessa’. “Os tolos fazem de tudo para chamar a atenção. Falam muito, gostam de expressar suas opiniões e se dizem conhecedores dos mais variados assuntos. Mas seus ensinamentos não produzem resultados em suas próprias vidas. São sepulcros caiados que apregoam seus ensinamentos vãos, como se fossem verdades. Ai daqueles que lhes derem ouvidos. “Estes que se dizem sábios e não são, jamais criarão raízes em suas relações. Nadam em águas rasas e edificam suas casas existenciais na areia, sem se darem conta de que na primeira tempestade, seus castelos de ilusão serão desmoronados. E quando sofrem, ao invés de tentarem aprender com o sofrimento, acabam por buscar culpados e, assim não tiram nenhum proveito da dor. Estes, que são controlados meramente por suas emoções, terminarão arruinados. São cegos que guiam outros cegos. “O verdadeiro sábio não retém seus ensinamentos, mas tampouco os oferece àqueles que não estão preparados para recebê-los. “Vamos descansar um pouco agora e terminaremos esta lição à noite.”

*

A tarde ou arrastada, até que, após o jantar, o guia convidou o jovem para deixarem a cabana. Ambos saíram com as lamparinas nas mãos e foram até a cerca que dividia o quintal. Um casal de coruja estava pousado no poste. — Desde a antiguidade este animal simboliza o saber. – diz o velho. – As corujas são capazes de enxergar o mundo que lhes cercam e, assim como os sábios – que usam as noites para pensar e buscar revelação – as corujas preferem as noites para buscar a sua caça. São animais discretos, voam baixo, não constroem suas casas nas árvores mais altas – mas muitas vezes em buracos no chão – o que significa humildade, têm bicos pequenos se comparados a outros predadores, mas suas garras são mortais. “Siga o caminho das corujas e será mais sábio que a maioria das pessoas. Não se exponha de maneira desnecessária – os tolos é que se preocupam com as impressões que irão deixar. O que vale não é a nobreza da árvore onde você construiu sua morada, mas sim a paz que há dentro do seu lar. O que importa, de fato, não é a altura, mas a eficiência de seu voo.” O guia se aproxima das corujas e as pega. Estranhamente elas não fazem nenhuma menção de voar. Segurando a lamparina, Jávier fita nos olhos de um dos animais. A coruja parecia saber de tudo o que acontecia naquele momento. — Mude a sua visão do mundo. – diz Álih com as duas corujas em seu braço esquerdo e com a mão direita na cabeça do rapaz que segura as lamparinas com os braços abertos. “Enxergue com mais clareza. Amplie sua percepção física, psicológica e espiritual. Deixe de lado os preconceitos – eles não te acrescentam nada como ser humano. Deixe de lado as coisas medíocres e concentre-se naquilo que lhe fará crescer”. Neste momento as corujas voam ao mesmo tempo em que as lamparinas se apagam. Jávier sente um arrepio intenso e tudo fica escuro. Só a lua tímida lá no alto, lutando contra as nuvens, quebra um pouco a escuridão. O rapaz cai de joelhos e faz uma prece:

Dá-me sabedoria para cumprir a missão para a qual me constituíste. Tenho tantas perguntas agora, mas sei que no momento certo as respostas surgirão. Seja meu guia, luz e direção. Entrego meu destino em Tuas mãos. Amém.

8. Deus

No oitavo dia Jávier pareceu ter acordado depressivo. Ao tomar o café se reservou a um cumprimento frio com o guia e depois de um longo silêncio, acabou entrando em um assunto desconfortável: — Acalentei por vários meses a ideia de vir ter contigo e por muitos dias ansiei a minha chegada aqui. Imaginei que quando chegasse seria bem recebido e, pelo contrário, senti que fez questão que eu não me sentisse bemvindo. Álih está comendo pão caseiro. — Quem a por traumas e, mesmo assim, segue doce e grato pela vida, está preparado para cumprir sua missão. Devemos entender que em nossa caminhada espiritual, enfrentaremos de tudo: seremos vítimas do preconceito, da indiferença, do abandono e da traição. E aqueles que desistem por qualquer uma destas causas, não são dignos da espada que carregam. “Se você tivesse se entristecido e partido, tudo bem; era sinal de que seus sentimentos são maiores que sua missão aqui neste mundo. Todavia, você fez vista grossa de minha indiferença e aceitou ficar, mesmo que, aparentemente, não fosse bem-vindo naquele primeiro momento. Eu sabia que viria e já te esperava, não era nada além de um primeiro teste.” — Vou lhe dizer algo que certamente não irá gostar. – Continua o rapaz. – Eu imaginava que chegaria aqui e você me colocaria em contato direto com Deus, mas me perdoe: não vejo nada de extraordinário por aqui. O velho termina de tomar o seu chá, pega uma vassoura que está atrás da porta, vai para o quintal e começa a varrer as folhas embaixo das árvores, sem retrucar. Por um momento o rapaz se sente mal por ter sido tão duro com o guia, afinal, embora tudo ali fosse excessivamente simples, era a única vida que

ele tinha. Além disso, o velho estava sendo, no mínimo, cordial e generoso. — O que me incomoda de fato é saber que um homem com tamanha sabedoria e sensibilidade espiritual vive aqui, enfiado no meio do nada. Não deveria estar viajando pelo mundo, esbanjando seus conhecimentos? — Deus não nos confia seus dons para que lhes transformemos em espetáculo para o mundo. – Responde o guia. – Os dons espirituais merecem todo nosso zelo. Não devemos usar nossas pérolas para entreter os porcos. “Quem se dispõe a seguir O Caminho Sagrado, deve aprender a lei da discrição, do quase anonimato, e precisa entender que a mão direita jamais precisará saber o que sua companheira da esquerda anda fazendo de bom. “Sejamos como o vento que vem, cumpre sua missão e parte sem contar-nos vantagens sobre as viagens anteriores e sem causar-nos inveja pelas que ainda virão. Sem rastros, sem aplausos, sem destino certo. “Como as nuvens que vêm, trazem a chuva e partem antes de receberem sua glória. Elas dizem a si mesmas: ‘Bem-aventuradas sejamos nós que não fixamos formas porque não precisamos ser reconhecidas’. “O Reino dos Céus é tomado por esforço. E apenas aqueles que combatem o Bom Combate com humildade e perseverança se apoderam dele. É servindo aqui na Terra, que temos a honra de sermos servidos pelos Céus. “Se desejar realmente seguir O Caminho Sagrado, saiba que o primeiro o é servir ao próximo, e isso, lhe amando como a si mesmo. A vida nos dá a chance de desenvolvermos os nossos dons, realizando as tarefas mais fáceis. O problema é que dizemos: ‘isso é simples demais se comparado aonde quero chegar’, sem nos atentarmos que estes os simples são essenciais. “Quando um viajante vai partir a uma terra distante ele diz aos que estão presentes em sua despedida: ‘Vou pisar em terrenos que jamais pisei antes’. Mas alguém dá um alerta: ‘Não se esqueça de que será necessário dar os primeiros os, e eles acontecerão em um terreno que já lhe é bastante conhecido’. O mistério só é revelado a quem zela e se dedica às tarefas mais simples desta vida”.

— Mas quando usamos os dons com clareza as pessoas reconhecem os milagres em nós e certamente crerão em Deus. – retruca Jávier. — Não estamos aqui para provar a existência de Deus. O que devemos fazer, na verdade, é manifestá-Lo em nossas atitudes mais simples. “Manifestemos Deus em nossa maneira de falar, no domínio de nossos impulsos, instintos e temperamentos; no amor ao próximo e no amor próprio; na gratidão que expressamos pela vida, na maneira de enxergar o outro, na compaixão. “Bem-aventurados sejam todos aqueles que compreendem a mensagem sagrada que diz: ‘vós sois a luz’, porque quando nos tornamos esta Luz, os milagres nos perseguem. Não é necessário montar um circo para que o espetáculo da fé se manifeste. Os anjos dizem ‘Matuke’; os escolhidos creem, e poderão entrar tranquilos no Reino dos Céus. “Ai daqueles que se encantam com o poder que exibem. Estes dizem: ‘Venham a mim’, mas estão perdidos. São cegos que guiam outros cegos. Perderam-se em seus caminhos e não conseguem perceber a própria ruína. “Não façamos de Deus e de Sua mensagem sagrada uma forma de sustento, mas uma fonte de vida a todos aqueles que Lhe desejam. Alguns dizem: ‘Temos fome e sede de justiça’. Estes, certamente, serão saciados. “O que Deus mais deseja de nós é que nos relacionemos com Ele. Não precisamos acender um fogo sagrado, sacrificar animais inocentes, percorrer caminhos místicos ou flagelar o próprio corpo. Tudo o que precisamos, na verdade, é abrir nossos corações com sinceridade e já estaremos em contato direto com Deus. Ele ouve e responde. É simples.” — Se fosse tão simples assim, todas as pessoas teriam contato direto com Ele. – refuta Jávier. — E todos nós temos. – responde o guia. – O problema é que muitos não desfrutam porque preferem os caminhos mais difíceis, sem entenderem que eles, na verdade, lhes afastam de Deus. Sem rituais, sem intermediários, Ele só deseja um coração sensível e desarmado.

*

— Venha comigo. Vamos molhar as plantas do jardim. – propõe Álih. Jávier está encostado em uma árvore e observa seu guia espiritual regando as plantas. Para o sábio, todas as energias do universo parece estarem concentradas ali, no meio daquelas flores e borboletas. O jovem resolve quebrar o silêncio: — Se criarmos um sistema de irrigação, ganharemos mais tempo e assim poderemos nos dedicar mais aos estudos sobre os mistérios de Deus! O velho não interrompe seu assovio melódico nem o trabalho. Jávier volta a falar: — O senhor gasta muito tempo com estas tarefas, me desculpe, mas meio inúteis, como jogar água em plantas e rachar lenha para a fornalha. Deveríamos comprar novos equipamentos para que pudéssemos dedicar mais tempo a estudar sobre as coisas sagradas. O sábio para por alguns instantes a sua tarefa e olha frustrado para o rapaz: — Você nunca chegará a Deus seguindo por este caminho. – Começa. – Se deseja realmente encontrar Deus, aprenda a gastar tempo observando flores e pegando borboletas. Elas te levarão até Ele. Entenda, ninguém encontra Deus através de livros e rituais sagrados. O velho respira fundo, assovia por mais alguns segundos, joga água em mais uma planta e termina sua lição. — O Caminho que nos conduz até Deus é belo como as flores e leve como as borboletas. Siga as coisas simples, e O encontrará. Neste momento uma borboleta enorme vem e assenta em seu braço. O rapaz

estranhamente sente um desejo enorme de chorar. Não por tristeza, mas é como se a divindade tivesse deixado sua glória para vir ear naquele pequeno jardim. Ele então fecha os olhos a fim de enxugar as lágrimas e quando olha ela não está mais lá. Jávier curva sua cabeça e faz sua prece.

Perdoe-me Senhor, por todas as vezes que duvidei de Sua simplicidade e amor. Revela-Te a mim todos os dias e de todas as formas que desejar. Só Lhe peço que nunca me deixes só. Amém.

9. A Gratidão

O nono dia insistia em não amanhecer. O tempo estava embaçado, e aquela era, sem dúvidas, a manhã mais fria desde que Jávier conheceu o guia. O rapaz acordou primeiro, preparou o chá, assou alguns biscoitos e foi para a janela e, dali, assistia a neblina lá fora. O guia acordou logo depois e foi direto para a mesa. O rapaz também se senta: — Eu estive pensando, não quero ofender nem nada, mas o senhor sabe que vim de um lar abastado, fui acostumado ao conforto e aqui, bem, comemos quase sempre as mesmas coisas, meu colchão é feito de palhas, e a cabana é muito simples, eu jamais teria coragem, por exemplo, de trazer um amigo até aqui. Álih, o guia, o observa em silêncio por um tempo, depois dá um longo suspiro e, sem dizer palavra, vai até a cama onde Jávier dorme e tira todas as palhas do colchão e as joga dentro da fornalha. Em seguida pega seus biscoitos e joga às galinhas. — O que você está fazendo? Ficou louco? – Jávier parece indignado. – Onde irei dormir agora? O que irei comer? O guia olha consternado: — Um homem que não é capaz de ser grato pela cama onde dorme e pela comida que lhe sustenta, não pode ter direito a elas. E, além do mais – prossegue depois de uma breve pausa – tem coisas em nossas vidas que só aprendemos a valorizar, depois de perdê-las. Hoje você está sem comida e sem lugar para dormir. Tomara que até amanhã já tenha aprendido sobre gratidão, valor e merecimento. Jávier não responde nada.

O velho prossegue: — Bem-aventurados sejam todos aqueles que sabem partir o pão de cada dia com amor e gratidão. Que encontram na própria vida, motivos suficientes para serem felizes. “Bem-aventurados sejam todos aqueles que não permitem que a esperança de bênçãos futuras, lhes transforme em pessoas insensíveis quanto a tudo isto que já têm recebido agora. Estes fazem a prece: ‘O pão nosso de cada dia dai-nos hoje’ – e recebem o milagre. Porque aprenderam a reconhecer a bênção do agora. Porque, embora tenham sonhos grandes e estejam dispostos a arriscar tudo atrás deles, nunca deixaram de reconhecer que o maior de todos os milagres está acontecendo neste exato momento. “Podemos escolher se nosso caráter será constituído de ouro ou de palhas. Muitas vezes vêm as provações. E nestes momentos é difícil manter a gratidão. Alguns se rebelam e am a duvidar da bondade da vida. Eles dizem: ‘Não merecíamos ar por tudo isso, nem tampouco aceitamos esta situação’. E assim, tornam-se pessoas piores, mais amargas e insensíveis. Veio o fogo e revelou quem elas eram. “Outras, todavia, recebem a provação com equilíbrio. Sofrem, choram, reclamam, pensam em desistir, e também chegam – mesmo que por um curto momento – a duvidar da bondade da vida. Mas, mesmo em estado de sofrimento, são capazes de encontrar algum sentido na provação. Então, confiantes, eles dizem: ‘Sabemos que o nosso Redentor vive, e que no tempo certo, levantar-se-á a nosso favor’. Estes perseveram até o fim e, por isso, receberão a coroa da vida. Combateram o bom combate com dignidade e aram pelo fogo sem perder a gratidão. “Talvez não seja possível expressar nossos agradecimentos com presentes ou com bens materiais, mas que nunca nos falte uma palavra ou um gesto que mostre o quanto somos gratos. Que a nossa gratidão não se limite apenas ao mundo espiritual. Que saibamos agradecer também aos nossos amigos, porque o sangue deles se misturou ao nosso durante o combate. “A gratidão é uma virtude conquistada por aqueles que possuem uma alma nobre. O insensato só enxerga aquilo que ainda não possui. Outros têm consciência de suas necessidades, mas preferem manter os olhos e o coração

em tudo que já receberam e conquistaram. “A gratidão sempre estará ligada à felicidade. Porque quanto mais agradecidos, mais agraciados e mais felizes. A gratidão atrai milagres. Mas lembre-se: na mesma medida em que gratidão e felicidade caminham juntas, a ingratidão e a tristeza também trilham caminhos muito próximos. “Porque uma alma ingrata estará sempre angustiada. Eles sofrem por que são invejosos e incapazes de ver a felicidade do outro. “Bem-aventurados sejam todos aqueles que permitiram o próprio amadurecimento. Porque se tornaram capazes de celebrar vitórias alheias. Porque sabem perder o combate sem perder a honra. Estes não precisam ser protagonistas. Contentam-se com uma vida discreta e não são capazes de guardar mágoa em seus corações. “Quando convivem com falastrões, aprendem com estes a importância do silêncio. Quando convivem com algum tolo, veem a necessidade de tornarem-se ainda mais sábios. Já conviveram com homens maus, e foi com eles que aprenderam a importância de serem bons em todos os momentos. Já foram vítimas da indiferença e é justamente por isso que aprenderam a importância da solidariedade. “Não devemos odiar a ninguém. Porque se olharmos para a nossa história, até mesmo aquelas pessoas que tinham a intenção de nos prejudicar acabaram por nos fazer o bem. Muitas vezes é fugindo de flechas que aprimoramos nossas habilidades. “Expresse sua gratidão em vida. Se for para dar flores, que sejam buquês e não coroas. Só uma alma grata é capaz de experimentar a paz que excede o entendimento.”

*

O velho para de falar e aponta na direção de uma árvore baixa e de galhos

retorcidos que só agora o rapaz observara. — Vamos até lá. – diz ao mesmo tempo em que começa a caminhar. Quando se aproximam Jávier repara que no topo da árvore está um ninho com vários filhotes. — Que ave é essa? — É um pelicano. Esta ave é um exemplo para todos nós. — Não parece tão diferente das outras. — O pelicano é considerado uma ave sa-grada, especialmente pelos cristãos. Isso se dá pela maneira zelosa com que trata seu filhote, ao ponto de, não havendo com que alimentá-los, dar-lhe de seu próprio sangue. Na total ausência de comida, o pelicano abre seu peito com o bico, e oferece a própria carne aos filhotes. — Isso acontece mesmo? – Pergunta o rapaz em tom surpreso. — Sim, e esta mãe que está diante de nossos olhos, provavelmente ará por isso. O inverno está chegando, seus filhotes ainda são pequenos, certamente terá que dar a sua própria vida por eles. — Lembra-nos a essência do cristianismo. — Sim, lembra. Uma velha história nos fala de um pelicano que, durante um inverno rigoroso, consegue sobreviver ao seu autossacrifício por alguns dias, oferecendo sua própria carne aos filhotes. Quando, finalmente, morre de fraqueza, um dos filhotes comenta com o outro: ‘ainda bem. Eu estava cansado de comer a mesma coisa todos os dias’. Neste momento Jávier olha mais uma vez para a mãe pelicano. Ela não parece preocupada com a possibilidade de dar sua vida aos filhos. Talvez porque esteja disposta a fazer de tudo para cumprir sua missão. Neste momento ele cai de joelhos e faz sua prece:

Obrigado Senhor, por todas as bênçãos recebidas. Perdoe-me porque em tantas vezes não fui capaz de reconhecê-las. Estou cercado de milagres e, em alguns momentos, não pude percebê-los. Ensina-me a ser grato, porque só assim terei a chance de ser humano. Amém.

10. Iluminação

Álih, o guia, acordou bem cedo e preparou o chá. Jávier, seu aprendiz, levantouse logo depois e também se sentou à mesa. — Hoje vamos colher sementes de girassóis. – disse o velho. O rapaz termina seu chá e ambos saem da cabana. Lá fora, a uns 500 metros, está a pequena produção de girassóis. Como o inverno se aproximava, as sementes precisavam ser colhidas. O velho pega um balde para si e entrega outro ao rapaz. Álih segura a primeira flor já quase totalmente seca e abre. As sementes estão lá dentro, e parecem gritar por liberdade. — Acho que seria muito mais útil se o senhor tivesse se ocupado plantando grãos ou fruteiras, já que podemos comer e vender na cidade. Não consigo ver utilidade em girassóis. – diz o rapaz. O velho franze a testa e abre mais uma flor despejando as sementes no balde. — Os girassóis são exemplos para nós, pois jamais viram as costas para a luz, daí vem o seu nome: por seguir o sol do nascente ao poente. Eles sabem que, se virarem as costas para a luz, irão morrer. O velho abre mais uma flor que está repleta de sementes: — Os girassóis são mais sábios do que muitos de nós. – Diz. – A maioria dos homens está sempre preocupada com comida e dinheiro, por isso, acaba por esquecer-se da luz. amos dias e anos buscando riquezas e prestígio, cheios de muitas preocupações. Mas os girassóis, durante este mesmo período, só estão preocupados em seguir a luz. Eles sabem que só assim cumprirão a sua missão, de fazer do mundo um lugar mais belo e de ensinar aos homens o caminho da iluminação pessoal.

O jovem não diz mais nada. Pega também uma flor e abre despejando as sementes no balde. — Existem dois reinos dominantes no universo: o das trevas, e o da luz. Tudo o que produzimos na vida das pessoas estará trabalhando a favor de uma destas fortalezas. Não há campo neutro. Todos nós estamos continuamente semeando trevas ou luz. “Cada decisão que tomamos ou palavra que lançamos ao vento – de alguma maneira terminará por exaltar uma destas duas forças. Bem-aventurados sejam todos aqueles que disseram a si mesmos: ‘Trilharemos o caminho da luz, sem temor’. Estes, que não permitiram que os vendavais desta vida interferissem na intensidade de suas chamas, terminarão por receber a coroa da vida. “Abençoado seja o caminho de todos estes que escolheram viver em harmonia, respeitando as convicções alheias, que semeiam otimismo e amor, que têm prazer no bem do outro e que são capazes de sofrer com os infortúnios da vida sem perder a doçura e se movem para melhorar o mundo em que vivem. Estes, que deixam suas pegadas sem vaidade e que preferem o silêncio às palavras vãs; que desprezam o mal e que mantiveram suas mãos limpas e seus corações puros. Estes, que assistem ao espetáculo da vida com nobreza e, sem boicotar a felicidade de ninguém, venceram o egoísmo aprendendo a amar o próximo como a si mesmos. Estes, que pregam suas crenças através da luz que irradiam e não por palavras de afronta. Que nos privam de sermões longos, mas nos alegram e nos ensinam com suas atitudes. Que sabem amar os seus amigos e respeitar seus inimigos, e que jamais negarão generosidade a quem quer que seja. Abençoado seja o caminho de todos estes que escolheram semear a paz ao invés da discórdia; e que enfrentam a dura batalha da vida com paciência e compreensão. Estes, sem dúvidas, verão a Deus.” — Eu até que gostaria de alcançar um nível assim, mas sinto-me incapaz. Parece impossível, não sei por onde começar. – diz o rapaz. — Comece sendo a luz em que você acredita. Espalhe amor e boas ideias nos lugares por onde ar. Acredite nas pessoas. Em momentos de adversidade, procure manter o controle emocional, afinal a irritação rouba nossa capacidade de pensar de maneira inteligente. Cuidado com o

autoengano. “Acredite: ninguém nos sabota mais do que nós mesmos. Não crie restrições às circunstâncias, quando elas se propem a lhe amadurecer. Aceite o amor e o sofrimento com a mesma coragem e intensidade, afinal, ambos são essenciais à vida. Cuidado com a euforia. Ela é boa e faz bem, mas precisa ser bem gerenciada para que não nos transforme em seres egoístas e menos humanos. Seja luz. Seja amor. Seja ideia. Seja a melhor de suas versões. “Vós sois a luz. Esta é a sua condição natural. Faça sempre diferença positiva na vida das pessoas. Ajudamos a Deus quando estendemos nossas mãos aos Seus filhos. Vós sois a luz. Às vezes nos perguntamos o que, afinal, viemos fazer aqui neste mundo, cheio de tanta maldade. Mas a resposta é simples: viemos para descruzar os braços. Só assim nossa essência será manifesta. Não devemos temer as críticas ou as circunstâncias. Nossa agem por aqui é única e ligeira. Não podemos parar nossa jornada a fim de ouvir opiniões destrutivas. Sigamos adiante. Iluminando a vida das pessoas com nossa presença, com nosso afeto e principalmente com nossa atenção. “Quando as trevas estiverem prevalecendo, não desista. É com o bem que se vence o mal. Para manter-se firme em seu caminho, alimente-se bem todos os dias. Cultive bons pensamentos, faça leituras que edificam, procure companhias que agregam valor às suas dimensões espirituais. Fuja das futilidades que trazem alegria momentânea, mas que viciam e embriagam a alma. Elas insistem dizendo que a próxima experiência será a última, mas estão mentindo. Acabarão pedindo mais. Sempre pedem mais, até que nos tornemos completos escravos de nossos impulsos. Alguns inimigos só podem ser vencidos se não forem enfrentados. “Devemos estar bem alimentados no corpo, na alma e no espírito. Mas lembre-se sempre de que nós somos seres espirituais – que habitamos um corpo e possuímos uma alma. Cuide bem do seu todo. Só uma pessoa que sabe cuidar-se, terá condições de cuidar de outras pessoas. “Lembre-se de que somos constantemente atacados em nossa mente. Às vezes questionamos nosso chamado, duvidamos de nossa missão e deixamos de ver sentido na busca espiritual.

“Mas é justamente em momentos assim que buscamos refúgio na fé. Ela também serve para lembrarmo-nos de quem somos. “Todos nós temos um lado sombrio e um lado iluminado. Irá prevalecer aquele que for mais alimentado. Quando desenvolvemos nosso ser espiritual, nos distanciamos das trevas. Claro, deveremos estar sempre vigilantes, pois o mal que habita em nós jamais morrerá, mas poderá ir perdendo forças ao longo da vida, caso absorvamos positivamente as experiências às quais vamos sendo submetidos.”

*

O dia ou rápido. E foi durante o jantar que Álih terminou a sua lição. A lamparina em cima da mesa produzia uma iluminação precária e trêmula. O cheiro da fumaça, as sombras, a noite lá fora, os ensinamentos de um dia inteiro. Jávier parecia aproveitar cada detalhe daquele momento. O velho segura a lamparina na mão e, com um copo de vidro, abafa o fogo. Aos poucos ele vai perdendo as forças, até que, quando está praticamente apagando, o guia retira o copo e o fogo volta a ganhar forças. — O que significa isso? – pergunta o rapaz. O velho deixa o copo e a lamparina de lado e fita Jávier. — Significa que jamais conseguiremos ser luz se permanecermos isolados das outras pessoas. Assim como o fogo só se mantém vivo se estiver recebendo influências externas, assim somos nós. Jamais seremos capazes de brilhar sozinhos. “Muitos se isolam do mundo buscando a santificação, não imaginando que, pouco a pouco, sua luz pessoal vai perdendo força.” Neste momento o velho se levanta com a lamparina em uma das mãos e caminha até a janela. O rapaz lhe segue.

— Veja. – diz ele colocando o braço para fora. Estava frio e o vento soprava impiedosamente agressivo. O fogo tímido da lamparina não resistiu. O velho tira um isqueiro do bolso, reacende a chama e olha dentro dos olhos de Jávier: — Não gaste energia em ambientes aos quais tem consciência de que não está preparado para enfrentar. Devemos ser prudentes e nunca menosprezar as forças contrárias. Não entre em conflitos desnecessários e jamais aceite lutar para provar alguma coisa, seja para si mesmo ou para quaisquer outras pessoas. “Cada tipo de luz foi criado para atuar em um lugar ou dimensão. Alguns se tornam devotos espirituais, outros líderes comunitários, há ainda aqueles que distribuem fortunas aos menos favorecidos, ou que ensinam o caminho da luz através de livros e poemas, outros recebem ainda o dom de cura, enfim. Há muitas maneiras de sermos agentes da Luz. Encontre seu lugar, meu rapaz. Permita que a Boa mão de Deus guie seus os, para que os dons que recebestes não sejam enterrados ou perdidos.” Jávier, que ouvia as palavras de seu guia de olhos fechados, sente suas mãos queimarem. Ele abre os olhos e elas brilham como as chamas da lamparina. — Através de suas mãos, muitas vidas serão salvas. Você está recebendo um dom para curar, tanto no corpo como no espírito. Jávier cai de joelhos:

Eu sei que me chamastes a andar na luz, meu Senhor. Tiraste-me daquelas trevas, me destes um caminho, uma fé, um sentido, e uma missão que considero serem sagrados. Ajuda-me a não olhar para os lados, nem para trás, mas apenas para Ti, razão de todas as coisas e esperança do meu coração. Sim, meu amado Senhor: todas as minhas esperanças estão postas nas promessas que fizestes naqueles nossos primeiros dias. Quando me sinto sem direção, aí me lembro de que lâmpada para os meus pés é a Tua palavra, e luz para o meu caminho. Amém.

11. A tristeza

No décimo primeiro dia a neve que vinha prometendo aparecer há dias realmente surgiu. Apesar de aqueles primeiros flocos serem ainda tímidos, o frio era de doer. A paisagem lá fora se tornou cinza e tudo parecia mais triste. Até mesmo o olhar do guia que sempre transmitiu paz e segurança, agora parecia vago, vazio e distante. Ambos se debruçaram na janela e ficaram olhando o mundo lá fora. O rio, as montanhas lá do outro lado, as pastagens que desapareceriam na próxima noite, as folhas que se renderam ao frio, os animais encolhidos buscando abrigo. — Tudo parece tão triste hoje. – Inicia o rapaz. O velho demora a responder. Seus olhos seguem fitos na paisagem lá fora e carregam a mesma tristeza. Talvez contando os invernos que já ou, ou tentando buscar na memória aqueles que foram mais rigorosos. O guia respira fundo, ajeita seus cotovelos que estão postos sobre o peitoral da janela e finalmente fala. — A tristeza sempre será mais útil à vida do que a alegria. Porque uma pessoa em estado de euforia raramente encontra tempo e razões para meditar. Mas a tristeza é por si mesma silenciosa e reflexiva. É nesta época do ano que a natureza para e repensa seus caminhos. Os animais hibernarão e, ali, em seu silêncio e quietude, meditarão em paz. “É na tristeza do inverno que as árvores aprendem a importância da companhia de suas folhas. Na primavera estarão ocupadas demais sendo iradas por todos; no verão farão sombra; no outono trabalham duro distribuindo seus frutos. Mas é na tristeza do inverno que elas param, sofrem a dor da perda e sentem-se inúteis. E é justamente neste momento de silêncio e solidão que se tornarão mais fortes para as próximas estações de suas vidas. “Conosco não é diferente. Que o sentimento de angústia nos seja uma porta de entrada ao nosso universo interior. Ele é vasto, às vezes sombrio, repleto

de surpresas, imprevisível, quase indomável, mas precisa ser explorado. Em momentos de euforia dificilmente pensamos na importância da meditação. Porque nenhum de nós quer sofrer. Porque nunca estamos de fato preparados para enfrentar o sofrimento. “Bem-aventurados aqueles que aceitam o sofrimento com coragem e dignidade. Que não se curvam, nem menosprezam os seus invernos pessoais. Pois sabem que, às vezes é preciso perder para ganhar. E, assim como as árvores que perdem suas folhas para que estas se transformem em adubo e, assim, tornem-se mais fortes – saberão perder, permitirão serem humanos, deixarão as lágrimas rolarem por suas faces, em alguns momentos chegarão a questionar a bondade da vida e de Deus, mas estarão abertos às lições do sofrimento. “Bem-aventurados aqueles que, embora estejam enfrentando seus invernos agora, sabem esperar as próximas estações. Eles dizem: ‘Este é o momento de descansar nossos corpos e nossas almas. Reflitamos enquanto encontramos descanso’. Outros, no entanto, se desesperam. Buscam culpados para suas perdas e infortúnios e, com isso, deixam de aprender algumas lições importantes. “Em momentos de dor, temos o desafio de não nos esquecermos de que a parte mais importante do ser humano é a sua humanidade. Que as lutas desta vida jamais sejam capazes de nos transformar em seres amargos e insensíveis. Sejam pelas pressões financeiras, uma traição, alguma doença, ou qualquer outro problema. Precisamos preservar a humanidade – mesmo que em alguns momentos nos sintamos humilhados e inúteis. “Em alguns momentos só nos resta crer que sairemos de tudo isso mais fortes. E dependerá da nossa postura ante os obstáculos. Algumas pessoas preferem a desistência. Dizem que seus invernos estão rigorosos e longos demais e que, por isso, não serão capazes de ar. Estes, na maioria das vezes, são incapazes de ver que as outras pessoas também têm problemas. Se acham perseguidas pelo destino e dizem: ‘nascemos para sofrer’. “Outros respeitam o rigor da estação. Sofrem seus invernos em silêncio e sabem preparar seus corações para a primavera. Eles dizem: ‘Que nossos olhos se abram e possamos ver que nunca vivemos dois dias iguais. Cada um trouxe um milagre diferente, que fez com que continuássemos respirando,

sonhando e caminhando debaixo do sol’. “Sabem comemorar suas vitórias sem desrespeitar o adversário, porque descobriram que o cenário do campo de batalhas muda muitas vezes. E quando perdem, lamentam sem perderem as esperanças. Porque com cada ferimento que levam para casa, levam também uma nova lição. “E descobriram que manter o otimismo é uma arte. Mesmo que as circunstâncias não correspondam às expectativas. Mesmo que, por algum tempo, os sonhos pareçam ter sido deixados de lado. Eles se permitem ficar tristes, mas usam da tristeza para se tornarem pessoas mais profundas, reflexivas e sensíveis.”

*

Ambos ainda estão na janela e assistem a neve cair agressiva lá fora. Jávier treme de frio. — Eu não estou aguentando. – diz o rapaz batendo queixo. — O corpo sofre e se esfria, mas o coração precisa manter-se aquecido. Que assim também seja com os problemas da vida. Eles surgem e, claro, nos afetam. Mas sua ação não pode mudar quem nós somos por dentro. Por fora nós trememos, sentimos dor e até choramos, mas do lado de dentro devemos permanecer ternos, aquecidos e cheios de vida. O velho caminha até a fornalha e coloca mais lenha no fogo. Eles se abraçam. É o primeiro abraço que Jávier recebe do guia em todos estes dias. — Assim como o fogo aquece nossos corpos, o amor aquece os nossos corações. Um dia o anjo nos chamará para atravessar o rio Áliphen. E quando isso acontecer teremos que responder a pergunta: Será que amei o bastante?

“O amor dá sentido à vida de quem o recebe e de quem lhe oferece. Ame. Amar significa estar disponível para os milagres, para as vitórias e derrotas, para tudo o que acontece em cada dia que nos foi concedido caminhar sobre a face da Terra. Nós somos fruto do amor de Deus.” Jávier não sente mais frio. Seu corpo a a queimar. Talvez seja a ação do Amor em sua vida. Mais uma vez ele cai de joelhos.

Obrigado por me amar como sou. Sei que não mereço tanto amor e, mesmo assim, me alcanças todos os dias com Sua misericórdia. Sei que nasci para dar e receber amor. Esta é a lição. Esta é a missão. Que eu ame sem requerer contrapartidas. Que eu aqueça sem esperar ser aquecido. Obrigado, meu Senhor, por amar-me tanto e transformar a minha tristeza em alegria e aprendizado. Amém.

12. A Responsabilidade

O dia seguinte amanheceu gelado. A noite fora longa e difícil, mesmo assim o rapaz acordou cedo e notou que o guia ainda não havia se levantado. Acendeu o fogo, preparou o chá e assou alguns biscoitos. Nenhum sinal de Álih. O aprendiz vai ao quintal, olha na plantação de girassóis, nada. O moço entra novamente na cabana e vai ao quarto. O velho está embrulhado por várias cobertas e treme de frio. — Acho que estou morrendo, filho. – Diz com voz fraca e trêmula. – Corra até a cidade, procure ajuda, compre algum remédio, qualquer coisa. Jávier contesta. — Não posso deixá-lo aqui sozinho, pode morrer. Além do mais, continua – o senhor me ensinou que jamais devemos abandonar um companheiro nestas condições. O velho se irrita. — Esqueça o que ensinei e faça o que estou mandando. Se você ficar aqui eu irei morrer do mesmo jeito. Jávier fica indeciso. Se ficar e o velho morrer, pensará que poderia ter buscado ajuda e salvado a vida dele. Se for até a cidade e quando chegar o velho estiver morto, se culpará para sempre por tê-lo deixado só. Neste momento ele pega o velho na cama e joga em seus ombros. — Iremos procurar ajuda juntos! – Diz. Eles saem pisando a camada de neve que já começa a pesar. O vento está gelado e a visão precária. No caminho, quando já atravessavam as montanhas, Jávier percebe que a voz do velho já não parece tão trêmula e debilitada.

“Engraçado”, pensa, “ele conta histórias e sorri enquanto eu o carrego. Será que não está doente e só queria ver meu comportamento? Isso não importa agora, vou levá-lo nos ombros e cumprir minha missão.” Neste instante o velho já apontava o dedo alegre em direção às montanhas explicando o nome de cada uma delas. — Deixe-me ir caminhando. – finalmente disse. – Estou me sentindo melhor. Álih propõe sentarem-se em uma espécie de caverna ao pé da montanha. — Sua atitude foi corajosa e irável, mas você se esqueceu de uma coisa: que é médico. Antes de querer buscar ajuda ou me jogar nos ombros – ambas atitudes iráveis, você deveria ter pensado: “O que eu mesmo posso fazer para mudar esta situação?” “Você está no último ano de medicina, já está cuidando de pessoas e terá uma carreira brilhante pela frente. Não poderá ar a vida toda jogando doentes nas costas e correndo por aí. Um homem, por melhor que sejam as suas intenções, só poderá mudar o mundo em que vive se assumir as suas responsabilidades. “Sua missão é bela e grandiosa, mas você precisa assumi-la. Não menospreze o que aprendeu. Seja remédio às pessoas, não transfira responsabilidades. “Cada um de nós tem a sua missão no mundo. Alguns se acham pequenos demais e preferem fugir. Outros, todavia, decidem enfrentar seus medos. “Na prática da medicina, muitos morrerão em seus braços e você lamentará por não ter podido fazer nada por eles. Em momentos assim, só uma coisa acalmará a sua alma: a certeza de que fez tudo o que podia para salvá-los e ofereceu o seu melhor. “Acredite em seu potencial. O valor que você se dá é o valor que lhe darão. Grandes pessoas acumulam grandes responsabilidades e elas precisam saber que em muitos momentos acabarão perdendo. Mas é no recomeço que se prova a verdadeira grandeza. Atitude, decisão, responsabilidade, capacidade de se reconstruir – tudo isso fará toda a diferença na carreira de qualquer pessoa. ‘Matuke’!

“Cuidado com aquilo que você diz. Lembre-se: a mais destruidora das armas não é a flecha, nem o canhão – que ferem o corpo e transformam muralhas em ruínas. A mais destruidora de todas as armas é a palavra – que destrói uma vida inteira sem deixar sinal de sangue, e as feridas jamais cicatrizam. Que seus lábios sejam remédio curador.” Neste momento Jávier chora. Talvez por que já tenha ferido muitas pessoas a quem ama com palavras duras e não sabe o que fazer para reparar tal mal, ou talvez por sentir-se pequeno demais diante da sua missão. O velho novamente lhe abraça. — Eu acho que não serei capaz. – diz. — Não mesmo. Mas em momentos de fra-queza e incerteza, tudo o que você tem a fazer é confiar em seu instinto. “Quando falta direção, o guerreiro Mapuche usa duas forças poderosas a seu favor: o instinto e a intuição. O guerreiro sabe que, para além da sabedoria adquirida em cada batalha e nos estudos do Caminho Sagrado, ele precisa conhecer o espaço que o cerca. Sua intuição compreende a linguagem no olhar dos companheiros e na iração das mulheres, quando seu grupo a em frente à pequena vila a caminho do campo de batalhas. ‘Se formos ao combate hoje sairemos derrotados’, ele diz. Alguém contesta: ‘Mas você diz isso baseado em que? Estamos em maior número, nosso desempenho foi bom nos treinamentos. Como sabe se perderíamos?’ Ele não sabe, mas sente. ‘Às vezes o sentir revela bem mais do que o próprio saber’. Ninguém mais questiona. Vão esperar até que sua intuição, ou o anjo, diga: ‘Matuke!’.” O rapaz fica em silêncio por algum tempo, sua mente ainda está ocupada tentando descobrir se o velho verdadeiramente esteve doente ou se fora apenas mais uma encenação. — O senhor estava realmente ando mal? O guia franze a testa. — Isso não importa agora, já que estou bom.

O rapaz parece se irritar com a possibilidade de ter carregado o velho nas costas por quilômetros com toda aquela tempestade. O guia sorri: — Ou você prefere que eu comece de novo aqui e você tenha que me levar até a cidade mais próxima? Jávier tenta achar graça. — Vou lhe ensinar algo e espero que jamais esqueça – diz o velho. – A sua atuação determinará o seu sucesso ou seu fracasso. Não adianta ser visto se você não é útil. Esteja em um lugar onde você realmente fará diferença na vida das pessoas. O local em que escolher atuar estará intimamente ligado com o que busca para sua vida.

*

Álih se deita dentro da caverna. — Eu não pedi pra você me trazer, agora me leve de volta, minhas pernas estão doendo. — O que? — Isso mesmo. Você é responsável por suas atitudes. É médico, deveria ter cuidado de mim, mas preferiu me jogar nas costas. Agora me leve de volta e deixe-me onde me pegou. O rapaz não acredita no que ouve. Mesmo assim não questiona. Pega o corpinho miúdo e joga nos ombros. — Agradeça a Deus todos os dias pelas cargas que lhe faz crescer – diz o guia. Se ele estava ou não doente, Jávier nunca soube, mas foi aí que aprendeu que um ensinamento vale mais que uma ordem.

Mesmo caminhando o rapaz eleva seus pensamentos aos Céus:

Obrigado Senhor, porque sei que cuidas de mim em todas as coisas, inclusive naquelas que não compreendo agora. Que todos os pesos que surgirem na minha vida, acrescentem algo de valor em meu caráter. Faça de mim uma pessoa grande. Só não permita que eu perceba isto. Amém.

13. O improviso

No décimo terceiro dia, ambos se levantaram um pouco mais tarde que o de costume e se dirigiram à cozinha. O velho assa os biscoitos, enquanto Jávier observa que a neve deu trégua. — O tempo hoje está um pouco melhor. O frio continua, mas a neve praticamente cessou. – observa. O velho caminha até a mesa levando consigo uma forma de biscoitos: — A vida é como a natureza – diz. – Dinâmica, movediça, uma raposa traiçoeira. A noite foi gelada, a manhã nasceu com esperança de sol e daqui a pouco as nuvens ganham força e voltam a reinar. Podemos, através da vivência, imaginar algumas coisas, mas na vida e na natureza, ninguém sabe ao certo o que vai acontecer. É por isto que precisamos aprender a arte do improviso. Não podemos ficar presos às fórmulas. Nem mesmo você, com tantas técnicas que aprendeu até aqui em seu curso de medicina. Em alguns momentos durante a vida terá que esquecer o que aprendeu se quiser ser capaz de fazer a coisa certa. Viver é atirar flechas na corda bamba. O rapaz não diz nada. Segue observando o sol corajoso que parece enfrentar a fúria do nevoeiro lá fora, procurando se impor. — Em um momento ou outro o inesperado acaba batendo à nossa porta e, se estivermos petrificados em um sistema de regras, a experiência acabará por se tornar um empecilho. Tem muita gente competente perdendo embates fáceis porque sabem tanto que se esqueceram da necessidade de reaprender. “Um Mapuche prefere não conhecer o caminho, porque só assim estará aberto a descobrir sempre novas alternativas. Da mesma forma o guerreiro jamais poderá descobrir a maneira de vencer uma guerra, porque cada batalha exige um novo desempenho, uma nova técnica, uma arma diferente, uma estratégia nova. Não sejamos pragmáticos na maneira de construir a nossa vida. Se o mundo mudar, nós mudamos com ele. Isso, claro, não

significa abrir mão dos princípios que estabelecemos para as nossas vidas, nem ignorar tudo que aprendemos até aqui. O novo só surge quando temos condição e entendimento para recebê-lo. O crescimento é resultado do amadurecimento com o enfrentamento diário de novas batalhas. “Alguém diz: ‘nasci assim e vou morrer assim’. Mas lhe digo: Não há nada pior que um auto engano desta proporção. Felizes sejam todos aqueles que se entregam a novos aprendizados e são capazes de se adaptarem às novas formas que a vida apresenta a cada instante. Estes dizem sobre si mesmos: ‘Somos seres em construção, não estamos prontos e tampouco estaremos prontos amanhã. Esperamos apenas que o processo transformador continue’. “E este processo continua porque decidiram reaprender com alegria. Serão gratos por cada experiência. Se reerguerão após cada queda. Mudarão a postura após cada derrota, e dirão: ‘perdemos desta vez, por isso na próxima oportunidade somos obrigados a vencer.’ E se movem para isso. “E a decisão de estarem sempre em reconstrução não tem absolutamente nada a ver com crise de identidade. Conhecem seus sonhos, seus medos, seus amores, suas origens, seus limites e estão bem definidos com isso, mas não sabem qual rumo a vida tomará amanhã e é por isso que desejam viver cada segundo com intensidade. Sabem aproveitar o sol e a neve. E respeitam, com humildade, o tempo de todas as coisas.” O velho se levanta e sai da cabana. Jávier segue logo atrás. Por um instante relembra tudo que viveu nestes últimos dias. A indiferença de Álih ao recebê-lo em sua casa; os ensinamentos sobre Maya e a Criação. O domínio próprio. A solidão de Deus, o milagre, o equilíbrio, o tédio, a sabedoria, o medo, a morte, a transformação. Cada frase do guia parecia, ainda, ecoar em sua mente e em seu coração. — Vou lhe ensinar hoje, que às vezes, só seremos capazes de acertar se estivermos dispostos a esquecer o que sabemos. Você está estudando há anos, mas em alguns momentos, para salvar vidas terá que ouvir apenas seu coração. “E para isso é necessário desenvolver a arte do improviso. O inesperado sempre bate à nossa porta e, quando estamos presos a formas e métodos,

somos incapazes de enxergar novas soluções.”

*

O velho busca o arco e algumas flechas e os entrega ao rapaz: — Segure o arco. Segure firme. Olhe adiante. Fixo, atento, sem medo, sem dúvidas. Lá está o alvo. Não permita que nada roube seu foco. Você tem uma missão e ela é mais importante que as distrações desta vida. Seja fiel àquilo que você se propôs. Lembre-se: sua missão inclui outras pessoas e, se errar agora, sua flecha ferirá a todas elas. Ouça a voz do seu anjo, ele está aí, bem do seu lado, sempre pronto a defendê-lo nas batalhas espirituais. Seja fiel aos princípios. São justamente eles que minimizam os seus erros. Saiba aproveitar os momentos certos. Tenha paciência, estes momentos surgem e, se estiver distraído, não será capaz de percebê-los. Siga os sinais, eles facilitarão as coisas. Antes de soltar a flecha pense em tudo o que ela irá causar. Não permita que o seu lado covarde decida por você. Jávier recebe as primeiras instruções e começa a treinar. O guia se afasta, vai cumprir alguma tarefa e deixa seu aprendiz sozinho com o arco e as flechas. O rapaz a horas treinando. Atira para o alto, para o infinito, procura algum alvo próximo, até que começa a escolher alvos menores e mais difíceis. A precisão ainda não é a de um mestre, mas a flecha já parte na direção esperada. Mais uma hora e centenas de tentativas, em sua maioria frustradas, até que ele consegue acertar de maneira precisa um pequeno alvo que está posto há uns 80 metros de distância. — Sorte de principiante! – Grita o velho que estava atento. O rapaz sorri. — Vamos subir uma montanha. – avisa o guia. — O senhor só pode estar brincando. Já está ficando tarde, é possível que haja uma tempestade a qualquer momento, é perigoso.

— A qualquer momento o cenário da vida pode mudar completamente e precisamos nos preparar para estas mudanças. E só estará preparado quem souber improvisar. “Ninguém aprende a lidar com a morte de uma pessoa querida, ou com o desespero da eminência da própria morte. A rejeição inesperada, uma perda, o abandono, a traição. Estas coisas podem surgir em algum momento de nossas vidas e são mais perigosas que as tempestades de neve. “Não que devamos viver esperando ou planejando que elas cheguem, mas só uma alma que sabe improvisar, saberá como agir em situações extremas.” Ambos pegam o caminho da montanha. A neve aperta um pouquinho enquanto caminham em silêncio. Por um momento Jávier questiona a utilidade daquele desafio. Podem estar arriscando suas vidas por nada. Primeiro entram numa mata congelada, praticamente sem vida, até que chegam ao pé da montanha. Acima deles toneladas de gelo. O vento inicia um assovio melódico e amedrontador que parece tornar-se mais agudo a cada segundo. — Pegue o arco! – O velho grita praticamente no ouvido de Jávier. O rapaz fica entre segurar em algum galho, sair correndo ou obedecer e tirar o arco. Ele tira. — Agora pegue uma flecha, vamos atravessar o rio por aquela ponte! Jávier não tinha percebido que ao seu lado havia um rio com uma ponte em estado precário e que provavelmente estava ali há uns 100 anos. O guia sai na frente. A ponte com cordas velhas e com mais espaços vagos do que ocupados em seu piso é o único meio de ar para o outro lado. A neve, o vento, a ponte suicida, o velho gritando: “Matuke!”. Neste momento ele tenta se lembrar de uma das lições mais importantes que aprendeu naqueles dias: “quando todo o exterior estiver um caos”, ensinara Álih, “procure manter o controle de suas emoções. Não permita ser influenciado pelas circunstâncias.”

O rapaz respira fundo. Tenta concentrar-se no que aprendeu até ali: — Agora atire. Há um pequeno espaço entre duas arvores há uns 100 metros do seu lado esquerdo. Não, não, do seu lado direito, você precisa colocar a flecha – uma única flecha entre os dois espaços. Neste momento ambos ouvem o barulho de um bloco de gelo que se desgruda do alto da montanha e que em poucos segundos inundará tudo ali. — Eu não consigo! — Pare de ouvir a voz do medo. — “Matuke!” Jávier dispara e a flecha cruza o espaço das duas árvores com precisão. Quando ele olha para trás, o guia não está mais lá. Jávier ainda arrisca olhar para baixo, a fim de ver se o mestre pisou em uma falha da ponte e desabou nas águas geladas do rio Áliphen, mas não consegue ver nada. A avalanche desce numa velocidade assustadora e a única coisa que tem a fazer é sair correndo. Alguns poucos segundos fazem separação entre a vida e a morte. O rapaz não tem escolha. Quando se sente livre da morte, senta em uma pedra e chora a perda de seu guia. Um vacilo, uma pisada em falso e tudo pode acabar. Ele olha para a montanha que se perde entre as nuvens e chora sua perda. Terá que carregar para sempre a culpa da morte de um inocente. Ele não deveria ter insistido para ar esses dias na casa de Álih. Tarde demais para lamentos. Neste momento ele cai de joelhos e chora:

Nós nem sempre sabemos o porquê de as coisas se moverem como se movem. Não compreendemos o porquê de o destino decidir alguns caminhos tão difíceis. E, Senhor, eu sei: não cabe a nós questionarmos os Seus desígnios, perdoe-me o atrevimento, mas hoje a única expressão que minha alma consegue ter é: por quê? Este é o único gemido que consigo lhe dirigir: por

quê? Amém.

14. O sentido

Depois de fazer sua prece, Jávier procurou um lugar para se esconder. Temeu voltar à cabana, ainda ventava forte e a noite já estava chegando. O rapaz encontrou uma pequena caverna no pé da montanha onde se escondeu, acendeu uma fogueira e ali assistiria a noite ar. Recostado no paredão de pedra lembrou-se das primeiras palavras com o guia, da flecha cortando a maçã no alto da árvore, de cada ensinamento, da humildade particular, dos olhos brilhantes e o corpinho aconchegante. Lembrou-se da primeira lição, quando precisou se deitar totalmente nu na água gelada, e, ali, sentiu o verdadeiro descanso da alma. Lembrou-se das machadadas desajeitadas e, de como foi evoluindo com cada erro. Álih não apenas ensinava as teorias de uma vida simples e plena: ele transmitia isso em sua postura. Na maneira carinhosa de receber as pessoas, no cuidado com seu pequeno jardim, na maneira em que se comunicava com os animais e com o universo. “Não precisamos de coisas públicas e grandiosas para mostrar nobreza em nosso caráter”, dissera o guia. “Revelamos quem somos nas sutilezas da vida. Na informalidade, no improviso, nas decisões corriqueiras e nas situações mais anônimas, é que publicamos a nossa verdadeira identidade. É fácil mostrar classe em momentos formais e gentileza quando temos consciência de que estamos sendo observados. Mas é no descanso do guerreiro que encontramos a sua verdadeira força. É quando se livra de suas armaduras e vai sentar-se diante da fogueira ao lado dos companheiros. É em sua calma ao observar a lua e na habilidade ao alimentar o fogo que se sabe se ele está ou não preparado para vencer os próximos combates.” Jávier chora mais uma vez. Chora por tudo que viveu, por tudo que acredita que ainda deveria viver. Chora por culpa. “Mas Deus tem lá os seus desígnios”, ouvira o guia dizer a alguém que procurou seus conselhos. “Sim”, meditou o rapaz. “Deus tem, mesmo que nós não entendamos agora. Mesmo que não tenhamos resposta, vale a pena confiar no destino que Ele escreveu para nós. Os justos vivem pela fé que aprenderam a cultivar.”

Enquanto a noite gelada se arrastava infinita, o rapaz lembrou-se dos seus primeiros sonhos: jogar futebol, ser soldado do exército chileno, virar marinheiro, alpinista, escritor, médico... “Mas qual o sentido de tudo isso? Nascer, crescer, sofrer, perder, ganhar, sonhar, evoluir, conquistar, chorar, sorrir, fazer e perder amigos, viver muito ou pouco tempo, de maneira ordinária ou incrível, ser generoso ou indiferente, ter alguém para dividir a vida ou caminhar sozinho, ter ou não ter filhos?!” Pela primeira vez nos últimos 14 dias, Jávier sentia-se absolutamente sem chão. Parece que havia perdido mais que um mestre, perdera também todo o sentido de seguir adiante. O rapaz sabia que um dos maiores desafios da vida é aprender a redesenhar o cenário e seguir adiante. “A vida muda”, dissera Álih. “E precisamos nos adaptar a estas mudanças.” Mas ele não conseguia pensar nisso agora. Não queria ver a tragédia como uma simples lição da vida. “Às vezes pagamos preços altos demais para aprender coisas que nem sempre valem a pena”, pensou. Não queria transformar a perda de Álih em um mero aprendizado. E, mesmo que crescesse com isso, qual seria o sentido final? “Um dia tudo isso aqui chegará ao fim. Não haverá livros, ou alguém que lhes possa ler. Não haverão lembranças a serem compartilhadas. E todo este esforço empregado agora para deixar um legado bom, de honra, terminará com o que? Chegará o dia em que ninguém mais habitará este Planeta, seja daqui a 100, mil ou um milhão de anos, qual a diferença? Não há sentido.” Numa mistura de pensamentos e confusão mental, Jávier acabou pegando no sono. Acordou no dia seguinte com o sol invadindo a caverna, provando que nem uma noite – por mais escura, ou uma tempestade – por mais destruidora que seja – não podem durar para sempre. Jávier se levanta com o corpo todo doendo e tenta reencontrar-se. Ele volta à ponte onde o velho possivelmente fora soterrado, mas a camada de gelo é extensa demais para que se possa procurá-lo. Ele até pensa em descer o despenhadeiro, mas entende que será inútil. A cabana não deve estar longe, caminharam pouco tempo até o pé da montanha. O rapaz logo encontra a estrada de volta e segue seu caminho. ará na casa, comerá alguma coisa, pegará as poucas roupas que trouxe e fará a única coisa que lhe resta: voltar para Santiago, levando consigo um vazio do tamanho do universo. Fechará a cabana, jogará comida aos bichos

pela última vez e depois estarão lançados à sorte. De longe o moço avistou o casebre. Seu telhado baixo coberto de neve, o portal pequeno, ao lado a modesta plantação de girassóis assolada pela tempestade da noite ada. Fora ali, entre aqueles girassóis, que Jávier aprendeu uma das mais importantes lições de sua vida: “Aconteça o que acontecer, jamais vire as costas para a luz.” O aprendiz para um pouco e fica observando a casa. Não será fácil entrar ali e ver tudo no lugar. A bacia de tomar banho, as varas de pescar, o pilão no canto da cozinha, a fornalha onde preparavam as refeições. Mais alguns os, algumas lágrimas voltam a escorrer pelo seu rosto, o som das galinhas esperançosas que já dão os ligeiros à sua volta.

*

Lá de fora Jávier escuta o assovio melódico e o barulho das as. Ele chega mais perto e observa que a porta está aberta. Quando entra vê o guia sentado amassando alho. — Você demorou. – disse o velho com o tom calmo e seguro de sempre. – Acabei de fazer chá. — Como conseguiu sair de lá? — Improvisei. — Por que não me esperou? — Por que têm lições na vida que só podemos aprender se estivermos sozinhos. — Achei que tivesse sido soterrado. — Serão necessárias mais mil tempestades como a desta noite. – Ele riu.

Jávier fez silêncio. Estava tão acostumado com a ideia da morte do guia que agora terá que se acostumar novamente com a sua vida. — No início de nossa jornada – inicia Álih – sonhamos com tantas coisas. Achamos que os ventos serão sempre favoráveis. Imaginamos um caminho, idealizamos suas paisagens e só depois é que descobrimos que nele há muito mais espinhos que pensávamos. E aí temos duas opções: seguirmos adiante driblando os obstáculos ou idealizarmos outro destino. Recomeçaremos cheios de imaginações positivas até descobrirmos que aquele também é um caminho repleto de desafios. “Você já escolheu o seu caminho. Em alguns pontos dele você se sentirá inútil, pequeno e incapaz, mas lhe digo: drible os espinhos e siga adiante. “O inimigo sempre lhe dirá: ‘Não há sentido algum em tudo isso’. Mas eu lhe afirmo que o sentido está no sentir. Portanto, viva cada instante com profundidade. Sinta o cheiro, o toque, o desafio, a emoção, o medo e tudo que cada instante lhe proporcionar. Não faça do destino a ser alcançado o sentido de sua jornada. Aproveite cada curva, cada árvore, cada mudança no movimento e intensidade do vento, cada pessoa que encontrar pelo caminho. Sinta. O sentido está escondido nas coisas mais simples e óbvias da vida e, muitas vezes, de tão às claras, acabamos não lhes dando o devido valor. “Sinta. Porque aí jaz o sentido de todas as coisas. Internalize. Porque é assim que se eterniza a existência. Se a nossa esperança se repousar apenas nesta dimensão da existência a vida será vã. Mas a razão de existir está em nossa capacidade de raciocinar sobre quem nós somos e sobre quem queremos ser amanhã. “Um dia tudo isso ará. Nem olhos viram, nem ouvidos ouviram o que nos aguarda. Mas saiba: cada ato nosso aqui neste lado do rio estará na balança da outra margem.” O rapaz, que agora se encontra sentado, curva a sua cabeça e faz uma prece.

Obrigado Senhor, por ter livrado Teu servo. Sei que minha existência só encontra sentido se repousada em Ti. Em Teus braços descanso minha alma. Nas penas de Tuas asas, recosto meus temores. Entrego meus sonhos e meu destino em Tuas boas mãos. Amém.

15. O amor

“O amor é muito mais que semeadura, é, na verdade, uma oferenda”. O velho está assentado à mesa e mastiga um biscoito enquanto segura o caneco com chá. Seus olhos estão fixos no rapaz: “Quando nos dispomos a amar, não precisamos nos preocupar com nenhum recebimento em troca. Porque o amor é sagrado demais para que o pratiquemos baseados em qualquer interesse. “A gente ama por que é justamente o amor que dá sentido à vida. Nascemos para amar. O fato de sermos ou não correspondidos não é o mais importante. O amor é puro, é nobre e jamais será solitário, mesmo que ame sozinho. “Você partirá dentro de poucas horas. Acredite: há muitas pessoas neste mundo que necessitam do amor que você pode lhes oferecer. Permita-se ser como um rio que flui para a generosidade. Reconheça as pessoas. Valorizeas. Não entre em demandas desnecessárias. Lembre-se de que a inveja é coisa de gente fraca, cheia de medos e incapaz de se alegrar com a alegria dos outros. O amor jamais lhe permitirá desejar o que é do outro, e lhe ajudará a se compadecer de algum fraco invejoso que lhe cercar. Mantenha braços, olhos e coração sempre abertos. “Tente não ver as suas necessidades mais que a das outras pessoas. Nossa essência é egoísta. Uma dor de dente em nós incomoda mais que toda a fome do mundo. “Não desista das pessoas quando elas demonstrarem suas fraquezas. É aí que precisarão ainda mais de seu apoio. Não perca tempo julgando a ninguém. Você sabe: todos nós tropeçamos em muitas coisas. Tornamo-nos sábios, diz o ensinamento cristão, quando não tropeçamos em nossa língua. Sejamos tardios no falar e sem pressa em publicar conclusões. Lembremonos de que estamos todos no mesmo barco da vida, a viagem é curta, cansativa, cheia de frustrações e devemos remar em unidade.

“Não somos adversários tentando provar que cada um é melhor que o outro. Não! Somos irmãos e, assim, devemos respeito, cuidado e amor uns para com os outros. “Em muitos casos vale apenas nossa presença, um abraço e poucas lágrimas e já teremos deixado o recado e algum tipo de forças ao companheiro ferido. “Na maioria das vezes ninguém deseja nossa opinião, nossa explicação ou nossos ensinamentos. Em circunstâncias assim, deixe o silêncio falar. Quando alguém que você ama errar, não lhe dê razão, mas também não deixe de lhe dar a mão. Certamente os juízes de hoje serão também os réus de amanhã. “Não queira se impor em absolutamente nada. Ouça, dê ao outro a chance de expressar-se, e certamente será muito mais amado pelo silêncio do que pelas palavras. Seja simples como os pombos e mantenha-se prudente como as serpentes. “Não seja tão formal. Procure sempre estampar um sorriso no rosto, leve a vida com o máximo de leveza possível e jamais cobre dos outros, aquilo que você mesmo não estiver disposto a fazer. “Seja otimista em todas as questões da vida, pense sempre nas coisas boas que podem lhe acontecer e no melhor das pessoas. Esse sentimento e atitude lhe trarão mais confiança e leveza no viver. “Aproxime-se de pessoas que vão ajudá-lo em sua busca espiritual. Gente pessimista, invejosa e amarga tornará o caminho mais escuro. Não que deva desprezá-las, mas construa níveis diferentes de relacionamento. “Aprenda a viver com o mínimo possível e, caso você alcance mais que o necessário, não se sentirá preso aos bens materiais. Esteja sempre disposto a dividir, mas faça isso com sabedoria. Pessoas presunçosas sofrem porque estão sempre em busca de mais. “Dedique-se sempre aos estudos espirituais. Medite, leia, converse com pessoas mais experientes, faça preces, esteja sempre em contato com os Céus. Sem Deus o homem se perde em si mesmo. “Trabalhe. O esforço pessoal traz sustento e dignidade. Apenas não permita

que o trabalho roube a sua vida. Gaste tempo com as suas próprias bobagens, elas também dão sentido a tudo isso. “Faça trabalhos voluntários. Visite idosos e lhes dê atenção, ame as crianças, faça doações, mas jamais trilhe este caminho a fim de ser visto pelos homens. Que tais ações sejam consequência de quem você é, e jamais trocas a fim de receber benefícios espirituais. “Seja grato por todas as coisas que tens e por todas as pessoas que estão à sua volta. Seja grato por sua saúde, pare por algum instante, reflita e enumere suas bênçãos. Elas são bem mais que você imagina. “Trate as pessoas com igualdade. Não meça a importância de ninguém pela quantidade de bens que foi capaz de ajuntar nesta vida. Não devemos nos surpreender quando conhecermos pessoas habilidosas na arte de ajuntar coisas. Fique perplexo diante de alguém desprendido o bastante para dividilas. Não viemos aqui nesse mundo para acumular fortunas, e sim para fazer o bem uns aos outros, mesmo que isso, às vezes, custe uma parcela de nosso conforto. Cresçamos juntos. E só é possível crescer quando há amor envolvido. Lembremo-nos: o amor sempre estará disposto a fazer sacrifícios.” Quando Álih terminou de falar, deu uma última mordida no biscoito e se levantou com a caneca de chá na mão. Algumas lágrimas desciam pela face do velho, talvez por ter consciência de que a partir daquele momento a solidão voltaria a invadir seu casebre, ou talvez por que houvesse cometido o erro de se apegar demais a alguém que estava destinado a partir. O guia caminha até a janela e fica assistindo ao mesmo cenário de sempre: as montanhas congeladas, a plantação de girassóis – agora queimadas pela neve, as galinhas correndo encolhidas lá fora, e rio Áliphen lá embaixo com o seu mesmo som tranquilizador. Mesmo em lágrimas o velho se volta para o rapaz e sorri.

*

Eles se abraçam e choram juntos. Jávier sente algo que jamais havia sentido. Naquele corpinho pequeno do guia, parece estarem concentradas todas as energias positivas do universo. Se sente amado, protegido, feliz, pleno, sem temores, sem necessidades e cheio de fé e ânimo para enfrentar a vida lá fora. O rapaz já ouvira histórias sobre o poder curador de um abraço, mas não podia imaginar que fosse possível um efeito tão intenso. Ele se perde no tempo. Segundos, minutos, talvez horas ali de pé. Quando sai de sua espécie de transe sente o calor do abraço se afastar, olha pela janela e Álih está lá fora rapando a neve da porta do casebre. Não havia sido abraçado pelo velho, ou talvez não tenha sido durante um período. Ele cai de joelhos e faz sua prece:

Obrigado, amado Senhor, pelo seu abraço. Eu precisava tanto dele. Necessito, a cada segundo mais, de Sua doce e plena presença em minha vida. Sei que me amas assim, como sou: pequeno e cheio de falhas. Dá-me a graça de estar cada vez mais perto de Ti. Amém.

Epílogo

Não daria tempo de ficar para o almoço. Jávier foi ao pequeno quarto onde dormiu nas últimas noites, pegou sua mochila com os poucos utensílios, ou na cozinha e colocou alguns biscoitos no bolso da jaqueta e saiu do casebre. O guia está assoviando enquanto arrasta a neve. O rapaz acena com a mão e o velho também faz um gesto. O rapaz dá uma última olhada em tudo. A bica de água onde se deitara, na pequena casa, no quintal, na cerca que divide a propriedade. — Adeus! – Ele grita na certeza de que jamais verá o velho. — Até logo! – responde ele como se o rapaz fosse apenas até a vila comprar mantimentos e logo estivesse de volta. Por um breve momento, Jávier é acometido por um sentimento de vazio, solidão, como se estivesse deixando para trás o seu próprio destino. Mas ele deveria seguir em frente. Chegara a hora de partir. A vida seguia irredutível lá fora. A faculdade, os amigos, a família, seus sonhos pessoais. Depois de caminhar por cerca de um quilômetro, olha para trás e ainda é capaz de enxergar o casebre e a pequena mancha do velho que ainda retira a neve. Quando retoma seu olhar para o caminho avista um rapaz, provavelmente da sua idade que vem ao seu encontro. — Olá! – Diz o desconhecido que parece esbanjar simpatia. — Oi. – Responde Jávier aparentemente desconfiado. – Você é desta região? Para onde está indo? — Não, não sou daqui. Venho de Santiago, nossa Capital. Tirei férias na faculdade. Estudo direito. Estou tentando desenvolver a minha espiritualidade. Jávier sente uma espécie de raiva, talvez o primitivo sentimento do ciúme.

— Qual o seu nome? — Benjamin! — Muito bem, Benjamin. Você está na direção certa. – Ele fala apontando com o dedo. — “Matuke!” – Responde o rapaz apertando o o. — “Matuke!”. Jávier respira fundo, sorri e segue seu caminho. Tem uma vida lhe esperando em Santiago e que ela seja o reflexo de quem ele se tornou.

FIM

Sobre o autor

Thiago Mendes é jornalista, radialista e autor dos livros: As coisas que a vida esqueceu de me ensinar, Diário de um soldado, O pastor de Zoar, e Ainda que eu fale a língua dos anjos; o “Soldado da Paz” mantém uma relação próxima com os leitores através do rádio, diversos jornais, sites e blogs onde faz questão de interagir com seus seguidores.

Copyright © 2020 by Thiago Mendes Ferreira Copyright © 2020 desta edição by Prime - R&F Editora

Capa: Fran Revisão: Ms. Suely Ferreira de Melo Cunha Diagramação e arte-final: R&F Editora

Distribuição: Bookwire Brazil Distribuição de Livros Digitais LTDA Pinheiros – São Paulo – SP

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M492c

Mendes, Thiago O caminho sagrado [recurso eletrônico] / Thiago Mendes.

- 1. ed. - Goiânia - [GO] : Prime, 2020. recurso digital ; 3 MB Formato: epub Requisitos do sistema: adobe digital editions Modo de o: world wide web

ISBN 978-65-992587-1-8 (recurso eletrônico) 1. Novela brasileira. 2. Livros eletrônicos. I. Título. 20-67623 CDD: 869.3 CDU: 82-32(81)

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