Universidade de Coimbra Faculdade de Letras
Somatologia subjectiva. Apercepção de si e Corpo em Maine de Biran.
Luís António Ferreira Correia Umbelino Coimbra 2007
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Dissertação de Doutoramento em Filosofia, especialidade de Filosofia Moderna e Contemporânea, apresentada à Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra sob a orientação da Sr.ª Prof.ª Doutora Maria Luísa Portocarrero (Universidade de Coimbra) e a co-orientação do Sr. Prof. Pierre Montebello (Université de Toulouse-le-Mirail).
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Índice Geral
Homenagem
7
Nota prévia.
9
Notação das obras mais citadas
11
Introdução
13
1. Intróito
15
2. Actualidade de Maine de Biran
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3. Consciência do corpo.
25
4. Presença(s) do corpo.
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5. Plano
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Parte I – A Crise das Ciências Europeias e o Biranismo
39
Capítulo 1 – Da experiência propriamente humana 1. O projecto de um ideologia subjectiva.
41 42
O ar do tempo. A metafísica restaurada e a ciência do homem. O horizonte da Idéologie. O caminho do sentido íntimo. 2. Antecipando a crise da ciência do homem.
47
A questão do método. Limites de transposição do método científico para o estudo do homem. Anfibologia do termo sensibilidade. A necessidade de traçar diferenças. Homo duplex ou a existência complicada. 3. Voluntas principium dat.
68
A ideia de causa: caminho de superação da crise da ciência. O princípio real de uma “ciência dos princípios”. A questão da forma e da matéria do pensamento. A vontade e o corpo: o grande impensado. 4. “Matéria” e “Forma”
82
O princípio do pensar. A forma e a matéria do pensamento. O solo firme da decomposição real do pensamento e a teoria das faculdades. A forma mais marcada de disjunção das faculdades: a fronteira da consciência.
509
5. Teoria real das faculdades
Capítulo 2 – Apercepção e reflexão. Saber de limite e limite do saber 1. Da reflexão no horizonte aperceptivo 2. Redobramento reflexivo.
89
97 98 102
Acepções do termo reflexão. A reflexão no contexto do sistema reflexivo. Reflexão e Apercepção. Reflexão especular e reflexão íntima. 3. Origem natural da reflexão: a escuta de si.
112
O ouvido unido à voz; Reflexão stritu sensu e lato sensu; O eu abstrahens mas não abstractus. Delimitação interior dos actos do eu. Desdobramento e redobramento. 4. Actividade reflectida e teoria das faculdades
122
Reflexão e teoria das faculdades. O caso das faculdades intelectuais. O limite de uso de cada faculdade. O próprio de cada faculdade. A “superioridade” da reflexão. O duplo critério reflexivo. 5. Não se pensa senão o corpo.
133
Reflexão e sentido íntimo. Os sistemas do biranismo. A intensidade do esforço e a derivação das faculdades. Não se pensa senão o corpo.
Parte II – Somatologia Subjectiva As presenças do corpo.
139
Capítulo 1 – Arqueologia do corpo primitivo
141
1. Crítica da razão ideológica.
142
A troca epistolar com Tracy entre 1803 e 1804: narrativa de uma revolução. Estudo comparativo das primeiras e últimas obras do fundador da Idéologie. O caminho abandonado por Tracy. O biranismo original e a questão do corpo. 2. Corpo da sensação e sentimento do corpo. Avaliação de Condillac.
146
Tracy leitor de Condillac. A doutrina de Condillac: a sensação transformada. A questão central da origem do conhecimento do corpo próprio. A importância do tocar. A dupla sensação de o. Limites da posição de Condillac segundo Biran: o corpo é sempre conhecido a partir de um modelo de conhecimento tomado do tocar exterior.
510
3. Sentimento do corpo e corpo do movimento. Avaliação de Destutt de
158
Tracy. As prometedoras leituras críticas de Tracy: correcções de Condillac. O princípio na motilidade. O primeiro esforço segundo Tracy. A dupla sensação de o corrigida pela categoria de movimento. Equívocos de Destutt de Tracy e traição ao princípio reflexivo que enuncia. A hipótese abstracta. A consideração da resistência como sempre exterior. Tracy, como Condillac, esquece o corpo próprio: esquecimento da resistência interiorizada, confusão sobre o sentido da vontade, silenciamento do verdadeiro princípio do pensar. 4. Corpo do esforço, corpo próprio. Maine de Biran por ele mesmo.
180
Aprofundamento da ideia de esforço. A vontade aplicada ao corpo: causalidade subjectiva e resistência interiorizada. O movimento voluntário. Causa já sempre conhecida e corpo presente intimamente. A incompreensão de Tracy. A análise biraniana dos limites da posição do seu mestre. O facto primitivo como uma certa relação ao corpo.
Capítulo 2 – O corpo tocante-tocado
191
1. Localização das sensações.
192
O estatuto da afecção na relação ao eu. Reminiscência modal e reminiscência pessoal. Primeiras ocorrências da categoria de espaço interior do corpo. A predisposição intuitiva. Esboço de coordenação espacial. Reminiscência objectiva e reminiscência pessoal. O espaço como símbolo sensível do tempo. 2. Percepção e atenção. O paradigma do tocar.
201
A impressão de um cheiro e o apreciar de uma fragrância. Saborear e degustar. Ouvir e escutar. Ver e olhar. Sentir ivamente e tocar activamente. A mão tocante-tocada. O privilégio do tocar. O tocar activo e sensação de pressão. 3. Conhecimento exterior do corpo.
217
Resistência e qualidades primeiras dos objectos; A especificidade do tocar. Critérios do conhecimento exterior. O que se entende por um objecto. 4. O problema do conhecimento representativo do corpo próprio.
223
Resistência exterior e resistência interior. Corpo exterior e corpo interior. Conhecimento exterior do corpo e conhecimento de objectos. A diferença do conhecimento do corpo como próprio. A resistência que cede.
511
Capítulo 3 – O corpo distinto, mas não separado da esfera aperceptiva. 1. Continuatio resistentis
229 230
A resistência contínua do corpo apropriado. A estrutura do esforço. O corpo como o “mesmo” e como “o diferente”. Diferença não separada. Esforço imanente e esforço intencionado. O corpo como objecto imediato da apercepção. O carácter não instrumental do esforço. A vontade enquanto diferente do desejo. Conhecimento não-representativo do corpo. Leituras de Hume e Engel. 2. O espaço do corpo
251
O corpo do tempo. O corpo da duração. O esforço: constância e repetição. A continuidade da resistência e o espaço interior do corpo. O corpo interiormente percorrido. Superação definitiva do modelo condillaciano do tocar para conhecer o corpo próprio. 3. O eu e o seu corpo (M. Henry leitor de Maine de Biran).
264
A interpretação do biranismo proposta por M. Henry: um corpo que é um eu. Limites e equívocos desta interpretação: confronto entre as posições de B. Baerschi, P. Montebello, F. Azouvi e A. Devarieux. Algo corresponde no biranismo a um corpo da imanência e da identificação completa, mas este corpo exclui o eu.
Capítulo 4 – O corpo furtivo
285
1. Um outro corpo.
286
Corpo da apercepção e corpo furtivo da vida impessoal. Na fronteira entre a reflexão e a vida. A interfacialidade do corpo. O corpo do conscium e o corpo do alienus. 2. Teoria da vida impessoal.
289
As afecções. De uma sensibilidade iva afectiva-intuitiva. Devir identificatório. A obscuridade das afecções. Simbólica sensível. Não sabemos o que pode o corpo que somos. 3. Inconsciente somático.
303
Sentido do inconsciente biraniano: perspectivas que defendem uma dimensão psíquica; perspectivas que defendem uma dimensão corporal. Inconsciente cerebral, inconsciente somático: o corpo perturbador, alienante. Indistância do corpo afectivo e identificação pura. O corpo na paixão, na emoção, na mania, na alucinação, no juízo moral, no juízo estético. Corpo e “tom” da existência.
512
4. O Temperamento.
319
Corpo e “sentimento geral da existência”. O temperamento e o involuntário do corpo. Crítica à tradição da fisiognomia: não se pode “ver” o temperamento porque o regresso à causa das afecções nos está interdito. Teoria dos “signos simpáticos”. 5. Teoria do homem melancólico.
333
Temperamento e melancolia. A refracção. Sentido filosófico do Journal. Sentimento melancólico e fragilidade da posse de si. O duplo regime de presença do corpo. Pensar na fronteira da ausência de si. O corpo que dissolve o pensamento e o corpo que permite pensar. Melancolia e corpo consistente. A melancolia testemunhada: hermenêutica da fragilidade.
Parte III – Terapêutica, alienação e imagem do corpo
357
Capítulo 1 – Teoria biraniana da alienação.
359
1. Alienus
360
2. Alienação e terapêutica.
364
Alienação e mania; “Psicotrópicos” e “Terapêutica moral”. Influências possíveis sobre as afecções. A imaginação manuseada. 3. Alienação completa.
368
O momento 1800 e a figura de Pinel. Teoria biraniana da alienação completa. Noção alargada de alienação: sono, sonho, sonambulismo, idiotia, demência. Limites das doutrinas de Bichat, Barthez e Cabanis sobre os fenómenos do sonho. Confronto com a tese da “alienação parcial”. O diálogo Biran / Royer-Collard. 4. Biran versus Pinel
388
Leitura biraniana das doutrinas de Pinel: louvor da prática terapêutica e crítica da divisão das faculdades a partir de um estado que exclui o eu. Sentido de uma alienação completa. Aproximação de Pinel à mesma história de pensamento que inclui a figura de Gall. Explicitação do problema da “tradução” como central no contexto das “ciências do espírito”. Excursus.
397
A interpretação de Foucault do momento 1800 e da figura de Pinel, no contexto de um estudo das grandes figuras da loucura. A crítica de G. Swain e M Gauchet, seguida de uma proposta de reinterpretação do
513
momento auroral da psiquiatria moderna.
Capítulo 2 – Poderão ver-se as saúdes do corpo?
403
1. Dualidade e dualismos.
404
A questão da tradução nos alvores da reflexão biraniana sobre o problema da causalidade e dos pontos de vista. Origens de um equívoco: o cartesianismo e o animismo de Stahl. 2. O problema da tradução do moral pelo físico.
424
Duas faces de um mesmo problema: manifestação do pensamento e redução do corpo à sobre-representação do seu exterior. Actualidade da meditação biraniana: os novos materialismos; as propostas neobehavioristas. As três justificações do paradigma da tradução: relação causal; ligação de identidade; ligação ou tradução simbólica. Os exemplos de Cabanis, Bichat, Bonnet e a figura paradigmática de Gall. 3. As promessas da frenologia de Gall. A metafísica da manifestação
438
explicada. A doutrina fisiológica de Gall e o “salto” para a frenologia. Características da doutrina frenológica. A crítica biraniana: denúncia das falsas bases, dos limites e dos equívocos. 4. Biran e Gall, Changeux e Ricœur: biranismo e hermenêutica da
448
condição humana. Actualização do diálogo Biran/Gall. O diálogo Changeux/Ricœur. O sonho de ver o pensamento. A consciência da diferença de planos na afirmação hermenêutica do sentido do homem capaz. O biranismo e a hermenêutica.
Conclusão
463
Índices e Bibliografia.
477
Índice onomástico.
478
Bibliografia.
487
Índice Geral
509
514
INTRODUÇÃO
1. Intróito. Marca o verdadeiro labor filosófico a humildade de se saber previamente interpelado pelo que anima, a partir de dentro, a experiência do pensar. Nos espaços inaugurados por esta experiência que se ilumina na surpresa e na esperança, na novidade e na responsabilidade, se arrisca aquele que percorre o caminho milenar da Filosofia, aquele que se aventura nos trilhos que sulcam o Ser e solicitam, “de modos sempre novos, a resposta humana”1. O arco dessa solicitação é sempre acolhido com outros. E, desde logo, com aqueles que honramos como pensadores, quando reconhecemos a sua diferença epocal, sistemática, ou conceptual como possibilidade de chegar a responder às exigências interpretativas de um problema real que, no chão histórico que é o nosso, então conseguimos começar a compreender, podemos continuar a compreender, ou experimentamos a necessidade de compreender de outro modo. O presente trabalho é motivado pelo tema filosófico do corpo e construído em diálogo com o filósofo francês Maine de Biran (1766-1824)2 que, no dealbar do séc. XIX, inaugura inesperadas, interpelantes e vigorosas possibilidades de uma verdadeira filosofia do corpo. Possibilidades estas que, defendemo-lo, chamam ainda, e porventura mais do que nunca, a pensar o leitor contemporâneo de filosofia ao longo de um triplo encadeamento temático: a) a crítica necessária aos limites da concepção moderna de 1
PEREIRA, Miguel Baptista, “Originalidade e Novidade em Filosofia”, in Biblos, LIII, p. 4. Para uma biografia de Biran consultar-se-á com proveito o seguinte conjunto de textos: BIRAN, Albert de “Maine de Biran dans le cadre de sa famille et de sa province”, in AAVV, Bulletin de l’Association Guillaume Budé, nº 8 (1949), pp. 66-74; LASSAIGNE, J., Maine de Biran, homme politique, Paris, 1957; LA VALETTE-MONBRUN, A., Maine de Biran. Essai de biographie historique et psychologique, Fontemoing, Paris, 1914 ; ROMEYER-DHERBEY, Gilbert, Maine de Biran ou le penseur de l’immanence radicale, Seghers, Paris, 1974, pp. 5-37; GOUHIER, Henri, Maine de Biran par lui-même, Seuil, Paris, 1970. Outras obras de divulgação e apresentação da doutrina biraniana contêm também elementos bibliográficos mas, em rigor, não acrescentam nada de significativo aos textos referidos. 2
15
experiência, que Biran antecipa ao contemplar um alargamento do conceito de causalidade – por via da consideração da relação primitiva da vontade ao corpo que lhe corresponde; b) a ponderação dos vários modos de presença do corpo no centro da experiência pessoal – não representativa – e a consequente denúncia das concepções empobrecidas de corpo que acompanham a ilusão de manifestação do pensamento; c) o reconhecimento do poder desconhecido do corpo e a tematização da fragilidade da posse de si.
2. Actualidade de Maine de Biran A investigação do tema corpo no contexto da obra de Maine de Biran situa-nos num dos núcleos mais definidores da sua meditação e, sem dúvida, no próprio âmago da sua contribuição mais original para a história da filosofia ocidental. F. Azouvi, com a clareza que só a economia de palavras bem escolhidas permite apresentar, já o disse: “É por ter descoberto o estatuto subjectivo do corpo próprio, a partir da experiência do movimento, que Maine de Biran tem na história da filosofia o lugar que é o seu”3. Esse lugar, embora durante largos períodos pouco estudado ou quase esquecido, nunca foi regateado a Biran, desde logo pelos grandes pensadores ses que o reconheceram como mestre4. A garra do pensamento biraniano foi celebrada por Bergson que, mesmo tendo escrito pouco (quase nada5) sobre Biran, não permite grandes dúvidas sobre a sua opinião nas parcas linhas que dedicou ao pensador de Bergerac. Em La philosophie française declarou: “Desde o começo do século, a França teve um grande metafísico, o maior que produziu depois de Descartes e Malebranche: Maine de Biran (…) Pouco notada no momento em que surgiu, a doutrina de Maine de 3
AZOUVI, François, «La Triplicité des points de vue sur le corps dans la philosophie de Maine de Biran», in Revue philosophique de Louvain¸ 1-2 (2005), p. 6. 4 Evocamos a célebre expressão de Royer-Collard que, ao sair da Igreja de São Tomás de Aquino, depois das exéquias fúnebres de Maine de Biran, afirmou do filósofo de Bergerac: “C’était notre maître à tous.” (Cf. GOUHIER, H., Maine de Biran par lui-même…, o. c., p. 8). Sabemos que tal afirmação é prova de amizade e iração mas, principalmente, de emoção. À época da sua morte poucos conheciam Biran como filósofo (muitos o como homem político). E, no entanto, a posteridade de Biran parece ter dado à frase de Royer-Colard uma inesperada veracidade. 5 Para os paralelos traçados entre o biranismo e o bergsonismo (muitas vezes tentados e outras tantas exagerados) veja-se: GOUHIER, H., «Maine de Biran et Bergson», in Les études bergsoniennes, vol 1, 1948, pp. 131-173; THIBAUD, Marguerite, L’effort chez Maine de Biran et Bergson, Imprimerie Allier Père et Fils, Grenoble, 1939.
16
Biran exerceu uma influência crescente: podemos perguntar-nos se a via que este filósofo inaugurou não é aquela pela qual a metafísica deve avançar definitivamente.”6 Raivaisson, como Bergson, celebrará igualmente a singularidade da obra biraniana no contexto da história da filosofia sa, como promessa de um “realismo ou positivismo espiritualista, tendo por princípio gerador a consciência que o espírito toma nele próprio de uma existência, reconhecendo que desta deriva e depende toda e qualquer outra existência, e que mais não é do que a sua acção.”7 Não se podendo negar o seu papel na “génese do espiritualismo francês”8, a filosofia de Maine de Biran mereceu, no entanto, uma renovada ponderação, se considerarmos o acolhimento de que é alvo por parte de autores determinantes da denominada fenomenologia sa9. Jean Patočka entreviu distintamente este encontro – cujas implicações não escaparam também, entre outros, a R. Barbaras10 – nos seus escritos fenomenológicos11 e, referindo-se nomeadamente à questão da corporeidade, resumiu-o nos seguintes termos: “a maneira de ver e de trabalhar dos fenomenólogos ses é guiada sem dúvida, pelo menos em parte, pelo exemplo de Maine de Biran”12. Sem deixar de ser polémica, a afirmação do fenomenólogo checo é suficientemente prudente para ser certeira: não se trata de saber a que ponto pode ser o biranismo interpretado fenomenologicamente13 – tarefa no mínimo, problemática –, mas 6
BERGSON, Henri, Mélanges, P.U.F., édition du Centenaire, Paris, 1972, p. 1170-1171. RAVAISSON, F., La philosophie en au XIXe siècle, cit. in DEVARIEUX, A. «Introduction», in De l’apperception immédiate, Le Livre de Poche, Paris, 2005, p. 9. 8 Sobre este ponto deve consultar-se a tese ainda não superada de JANICAUD, Dominic, Une généalogie du spiritualisme français, La Haye, 1969, nomeadamente, p. 15 e ss. 9 Cf. SPIEGELBERG, Herbert, The Phenomenological Movement. A Historical Introduction, Martinus Nijhorf, The Hague, 1965. Veja-se, em particular, o segundo volume. 10 Cf. BARBARAS, R. « Présentation », in Les études philosophiques, avril-juin 2000, Paris, p. 146. 11 PATOČKA, Jean, Papiers phénoménologiques, Million, Grenoble, 1995. 12 ID, Papiers…, o. c., p. 15. «Les phénoménologues français, guidés sans doute, du moins en partie, par l’exemple de Maine de Biran, ont une autre manière de voir et de travailler. » 13 Em 1938, P. Fessard, numa breve nota de rodapé ao seu texto La méthode de réflexion chez Maine de Biran, reputou de assinalável a proximidade entre a atitude filosófica de Biran e a époche husserliana, avançando a possibilidade de se considerar como legítima uma interpretação fenomenológica da filosofia biraniana (Cf. FESSRAD, P., La méthode de réflexion chez Maine de Biran, Libraire Bloud & Gray, Paris, 1938, p. 52, n. 1). Partilhando o mesmo pressuposto sem descartar as dificuldades inerentes, Raymond Vancourt propôs-se meditar a relação entre Maine de Biran e a fenomenologia contemporânea a partir de três pontos de o incontornáveis: a partilha de um mesmo movimento metodológico do pensar, a questão das condições de incarnação e a ponderação do estatuto ambíguo do corpo (Cf. VANCOURT, R., “Maine de Biran et la phénoménologie contemporaine”, in Bulletin de l’Association Guillaume Budé, nouvelle série, nº 8, décembre, 1949, p.85-90). Outros trabalhos poderiam ser, neste contexto, invocados. Sem pretender ser exaustivo recordem-se, por exemplo, os trabalhos de A. Corsano que, no seu texto Interpretazioni di Maine de Biran, se questiona sobre se não terá sido Biran a desvendar 7
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antes, isso sim, de constatar a que ponto é significativo o facto de ser possível fazer uma história da influência contemporânea de Maine de Biran através das “inflexões da fenomenologia na segunda metade do séc. XX.”14 O modo de aclimatação da fenomenologia em França, tal como se constituiu ao longo dos espaços de sombra15 da fenomenologia husserliana, obrigaria, assim, a ponderar a história de um mútuo empréstimo ou entrecruzamento entre a inspiração fenomenológica e traços da própria tradição filosófica sa – tornando incontornável a necessidade de repensar as relações entre a fenomenologia e a tradição reflexiva sa. A consideração do diálogo assim estabelecido não deixará de ser duplamente importante: por um lado, tornará evidente o facto de serem instrumentos teóricos disponibilizados pela fenomenologia a permitirem pensar integralmente um conjunto de problemas determinados já em análise na cena sa; por outro lado, permitirá concluir que uma certa tradição filosófica sa se constituiu como terreno fértil para o cumprimento de algumas das possibilidades do próprio pensamento fenomenológico que, deste modo apenas, se compreenderá integralmente na abordagem dos seus vários prolongamentos e metamorfoses. Ilustra, seguramente, a história desse entrecruzamento fértil M. Merleau-Ponty, que meditou a filosofia de Biran nas suas aulas na École Normale Supérieure dedicadas ao tema clássico da “união da alma e do corpo”16. Apesar das críticas que endossa a Biran – nem sempre justas, mas consequentes com o que será o desenvolvimento do seu primeiro o que virá a ser o desafio lançado por Husserl (Cf. CORSANO, A., “Interpretazioni di Maine de Biran”, in Giornale critico della Filosofia italiana, XXXVI,, 1957); de S. J. Morin que afirma de Biran ser o “Merleau-Ponty do séc. XIX” (Cf. MORIN, S.J., “Maine de Biran: une critique du théorème physiologique”, in Canadian Philosophical Review, XII, 1973); de I.W. Alexander que escreve em 1984 Maine de Biran and Phénomenology (Cf. ALEXANDER, I. W., “Maine de Biran and Phenomenology” in French Literature and the Philosophy of Consciousness, Cardiff, 1984); do famoso estudioso de Biran, B. Baerschi, que dedica ao tema um interessante artigo publicado na Revue de théologie et de philosophie (Cf. BAERSCHI, B., “L’idéologie subjective de Maine de Biran et la phénoménologie”, in Revue de théologie et de philosophie, nº 113, 1981, p. 109-122) e um capítulo no seu importante texto L’ontologie de Maine de Biran (Cf. BAERSCHI, B., L’ontologie de Maine de Biran, Éditions Universitaires de Fribourg, 1982, pp.433-442); ou do fenomenólogo francês R. Barbaras que considera a problemática em questão num diálogo com M. Merleau-Ponty e M. Henry (Cf. BARBARAS, R. Le tournant de l’expérience. Recherches sur la philosophie de Merleau-Ponty, Vrin, Paris, 1998, p. 95-155). Para o essencial destas referências, veja-se AZOUVI, F., Maine de Biran. La science de l’homme, Vrin, Paris, 1995, p. 89, n.1. 14 BARBARAS, R. « Présentation », in Les études philosophiques, avril-juin 2000, P.U.F., Paris, p. 146. 15 Cf. MERLEAU-PONTY, Maurice, Le philosophe et son ombre, in ID Éloge de la philosophie et autres essais, Gallimard, Paris, 1971, p. 241-287. 16 MERLEAU-PONTY, M., L’union de l’âme et du corps chez Malebranche, Biran et Bergson, Vrin, Paris, 1968, pp. 46-78.
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percurso no sentido de uma endo-ontologia do sensível –, Merleau-Ponty não deixou de notar, com lucidez, a originalidade e fecundidade das propostas filosóficas do autor da Mémoire sur la décomposition de la pensée. Sublinhará, desde logo, a profundidade de uma filosofia que não parte de um ser encerrado na consciência que tem de si próprio, mas de um ser que está “em vias de tomar consciência de que existe, que luta contra uma opacidade prévia, um ser que procura ‘tornar-se eu’”17. Nesta evidência, que diz respeito ao sujeito do esforço, lê Merleau-Ponty o gesto de regresso a um aquém fundador de todas as construções abstractas, a um vivido de si, que merece ser saudado como percursor da fenomenologia. Neste sentido, declarará: “antecipando-se à fenomenologia, Biran parece orientar-se aí para uma filosofia indiferente à distinção entre interior e exterior”18. O sentido desta afirmação merece atenção. Na Phénoménologie de la perception, Merleau-Ponty interpretará o regresso às coisas, imperativo fenomenológico, como regresso ao solo de enraizamento perceptivo, ao vivido (do mundo da vida) nunca eliminado pela investigação científica que, por relação a ele, será sempre abstracta e dependente. “Os pontos de vista científicos – afirmará – segundo os quais eu sou um momento do mundo (...) são sempre ingénuos e hipócritas porque subentendem sem o mencionar, esse outro ponto de vista, o da consciência.”19 Maine de Biran não se cansou de dizer o mesmo. A sua defesa e tematização de um ponto de vista do sentido íntimo, irredutível ao ponto de vista representativo, pode confirmá-lo, como o pode a revelação da presença do corpo apropriado nessa esfera de evidência apercebida. Apesar das diferenças, Merleau-Ponty não poderia deixar de reconhecer este golpe inovador da filosofia biraniana. “O facto primitivo – comentará – é a consciência de uma relação irredutível entre dois termos eles próprios irredutíveis. (...) Não é um facto interior nem um facto exterior; é a consciência de si como relação do eu a um outro termo”20, dualidade primitiva que, eis o decisivo, abre a via de uma filosofia do corpo que subverte a alternativa da imanência e da transcendência21: à descoberta do esforço como relação originária ou facto primitivo do sentido íntimo, corresponde, de facto, a revelação da presença do corpo numa experiência que escapa à 17
ID, o. c., p. 54 ID, o. c., p. 56 19 MERLEAU-PONTY, M., Phénoménologie de la perception, Gallimard, Paris, 1945, p. III. 20 ID, L’Union de l’âme et du corps, o. c., p. 51 21 Cf. BARBARAS, R., Le Tournant de l’expérience, o. c., p. 111. 18
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representação, na medida em que se esboça “numa espacialidade do corpo anterior à espacialidade objectiva” e obriga a concluir que “a consciência de si é ao mesmo tempo consciência do corpo.”22 A consideração da influência da filosofia de Maine de Biran sobre o pensamento fenomenológico não poderia ignorar, naturalmente, os trabalhos de M. Henry, que estuda a filosofia biraniana desde a redacção da sua obra L’Essence de la manifestation. A obra incontornável de Henry para o estudo do biranismo numa perspectiva fenomenológica, que será Philosophie et phénoménologie du corps, começou por ser um capítulo daquele texto, tendo a sua redacção sido principiada durante os anos de 1948-194923. O apêndice biraniano constrói-se, pois, o que merece ser realçado, no momento em que se M. Henry prossegue o propósito de estabelecer contra o idealismo “o carácter concreto da subjectividade, mostrando que ela se confunde com o nosso próprio corpo”24. Contemporânea das investigações merleau-pontyanas sobre o corpo, mas ignorante destas, a investigação de Henry desenvolve-se por caminhos claramente distintos25. Os elogios ao pensador de Bergerac não são, no entanto, igualmente, poupados: “O primeiro filósofo e, verdadeiramente, o único que, na longa história da reflexão humana, compreendeu a necessidade de determinar originariamente o nosso corpo como um corpo subjectivo é Maine de Biran, esse príncipe do pensamento, que merece ser visto por nós, ao mesmo nível que Descartes e Husserl, como um dos verdadeiros fundadores de uma ciência fenomenológica da realidade humana.”26
22
MERLEAU-PONTY, M., L’union de l’âme et du corps, o. c., p. 65. É significativa a defesa do filósofo de Bergerac em relação às críticas de Brunschvicg, claramente assentes num “ponto de vista exterior”. Biran representa para Merleau-Ponty o filósofo que, longe de resvalar para um campo não filosófico, procura, antes, abrir novos territórios para a empresa filosófica. Cf. para uma primeira abordagem à leitura merleau-pontyana de Biran o artigo recente de DUCHÊNE, Joseph, «Merleau-Ponty lecteur de Biran: a propos du corps propre», in Revue philosophique de Louvain, 1-2 (2005), p. 42-64. Ensaiámos, num sentido análogo e tendo chegado a resultados apenas provisórios, uma meditação neste contexto aproximando os dois filósofos através da categoria de “espaço interior do corpo” no nosso artigo: «Phenomenology of the Inside of Space. Readings of Maurice Merleau-Ponty», in WIERCIŃSKI, Andrzej (ed), Between Description and Interpretation. The Hermeneutic Turn in Phenomenology, The Hermeneutic Press, Toronto, 2005, pp. 113-124. 23 Cf. HENRY, Michel, Philosophie et phénoménologie du corps, P.U.F., Paris, 2ª ed., 1987, p. V (Avertissement à la seconde édition). 24 ID, o. c., l. c. 25 Cf. ID, o. c., l. c. 26 ID, o. c., p. 12.
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Os comentadores contemporâneos de Maine de Biran denunciaram27 os limites e fragilidades de alguns pontos da análise henryana do biranismo (como mostraremos), designadamente no que diz respeito à consideração do corpo como um eu, constituindo uma esfera de subjectividade transcendental. Tal não significa, decerto, que se recusem tais textos. A experiência de ser o próprio corpo não é seguramente incongruente, nem Biran a ignora. Mas que seja colocada no “lugar” onde Henry a julga encontrar será, no mínimo, questionável. A questão do corpo em Biran é, porventura, a questão da própria dualidade primitiva ou de uma identidade aperceptiva que se constitui na diferença a si. O corpo é, na estrutura dessa relação primitiva dual, elemento constitutivo, dimensão: é o mínimo de alteridade que, no centro da identidade, permite a própria apercepção imediata. Em Biran, pois, não podemos falar de subjectividade senão como exercício perseverante sobre a diferença não separada do corpo apropriado. Mas a meditação sobre o corpo não se encerra aqui, na consideração do corpo apropriado e ajustado à vontade, mas estende-se até às considerações de um corpo do involuntário. As possibilidades e alcance da oportunidade de meditar originariamente a própria individualidade pessoal como experiência de ser o mesmo como distinto, não escaparam ao projecto ricœuriano de uma fenomenologia hermenêutica28. Reclamandose expressamente da tradição reflexiva sa, do horizonte da fenomenologia husserliana, e assumindo-se como variante hermenêutica dessa fenomenologia29, tal caminho de investigação – que se prolongará, a partir do primado da mediação reflexiva de si, como hermenêutica de uma condição humana que toca a vida e o corpo e é gesto de encontro através dos signos, dos símbolos, dos textos30 – não ilude a sua dívida para com o pensador de Bergerac, logo desde os primeiros os trilhados no contexto de uma Filosofia da Vontade31 e da consideração do homem capaz na plurivocidade que pode assumir (na contraluz dos seus malogros) a afirmação eu posso32. Projecto 27
Voltaremos a este ponto e então indicaremos as referências bibliográficas necessárias. RICŒUR, Paul, Réflexion faite. Autobiographie intellectuelle, Éditions Esprit, Paris, 1995, p. 22. 29 ID, Du texte à l’action. Essais d’herméneutique II, Seuil, Paris, 1986, p. 29. 30 ID, o. c., p. 33-35. 31 Cf. ID, Philosophie de la volonté. I – Le volontaire et l’involontaire, Aubier, Paris, 1949, pp. 206 e ss.; 291 e ss. 32 ID, Lectio magistralis. Université de Barcelone, 24 avril, 2001, in JERVOLINO, Domenico, Paul Ricœur. Une herméneutique de la condition humaine (avec un inédit de Paul Ricœur), ellipses, Paris, 28
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temerário, a sua concretização dependeria de uma fenomenologia da vontade, de uma empírica da vontade e de uma poética da vontade, triplo rosto da tentativa de encontrar um fio condutor no labirinto humano das suas possibilidades mais próprias. Ricœur ia assim ao encontro da interpelação incessante da Phénoménologie da la perception de M. Merleau-Ponty, procurando explorar os mesmos caminhos de uma interpretação não ortodoxa da fenomenologia33 e de uma ponderação aprofundada da questão da corporeidade. Ao campo aberto pela análise fenomenológica merleau-pontyana da percepção e dos seus mecanismos, poderia corresponder ainda, desde logo, uma análise fenomenológica das estruturas do voluntário e do involuntário no domínio prático, oportunidade evidente para continuar o trabalho de alargamento da análise eidética de Husserl até à esfera do sentimento e do sofrimento34. A tal projecto não será estranha a tarefa de – preservando “as oportunidades de conciliação entre uma fenomenologia neutra relativamente à escolha entre realismo e idealismo e a tendência existencial da filosofia de Marcel e de Jaspers”35 – pensar um Cogito integral, para aquém da pretensão de “imediateidade, de adequação e de apodicticidade do cogito cartesiano e do eu penso kantiano”36. “A experiência integral do Cogito – escreve Ricœur – inclui o eu desejo, eu posso, eu vivo e, de um modo geral, a existência como corpo”37. O que não é dizer pouco. A consideração das estruturas intencionais de um cogito prático e afectivo exigem da reflexão a capacidade de meditar as implicações de um eu penso corporalizado, cuja condição de subjectividade, porque já sempre participação ou adesão activa no mistério global da própria incarnação ou
2002, p. 81. « Il m’a paru que les questions multiples qui m’avaient occupé dans le é pouvaient être regroupées autour d’une question centrale qui affleure dans notre discours dans les usages que nous faisions du verbe modal ‘je peux’.» 33 Cf. ID, Réflexion faite. Autobiographie intellectuelle, Éditions Esprit, Paris, 1995, p. 22. «Je découvris, dans la préface que, sur la demande d’Émile Bréhier, Merleau-Ponty avait placé en tête de sa Phénoménologie de la Perception une résistance de même nature à l’interprétation orthodoxe de la réduction phénoménologique. Le philosophe que j’irais allait jusqu’à dire que, toujours nécessaire, la réduction était condamnée à n’être jamais achevée et peut-être à ne jamais véritablement commencer». Cf. MERLEAU-PONTY, Phénoménologie de la perception, o. c., p. VIII : «Le plus grand enseignement de la réduction est l’impossibilité d’une réduction complète.» 34 Cf. ID, o. c., l. c. Cf. RICŒUR, P., Le Volontaire et l’involontaire, o. c., p. 10. « Les échantillons de description que donnent Ideen I et II sont principalement consacrés à la perception et à la constitution des objets de connaissance. La difficulté est de reconnaître quel statut peut avoir l’objet, le corrélat de conscience dans le cadre des fonctions pratiques.» 35 RICŒUR, P., Réflexion faite, o. c. , p. 22. 36 ID, o. c., p. 12-13. 37 ID, Le volontaire et l’involontaire, o. c., p. 13
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corporeidade38, não poderá ser entendida como gesto soberano de auto-posição. Neste sentido, a tarefa de descrição das estruturas recíprocas do voluntário e do involuntário poderá ser encarada como primeiro contributo para uma verdadeira conversão do pensamento que, reencontrando o corpo e o involuntário39 no centro do cogito, se deixe interpelar pelo fundo “activo e relacional que a o estar a ser ou agir do homem.”40 Não nos parece possível negligenciar que, na viragem para o séc. XIX, Biran contribua já para a história de pensamento que permitirá esta considerações. É seu o ensejo de compreender o que significa pensar com o próprio corpo e não contra ele, o que significa pensar como causa e não como substância ou, enfim, o que significa afirmar eu sou a partir do diálogo originário, primitivo, com as próprias condições de enraizamento. Também para Biran não há verdadeira posse de si (consciência, pensamento) senão através de uma alteridade, de uma diferença não separada, cuja medida encontra na opacidade de uma resistência que se interioriza sem que a sua consistência seja perturbada e o eu, consequentemente, redutível à pureza da Ideia. O Cogito é um Volo, sendo que a sua estrutura cindida, fissurada, dual implica uma força e um corpo sustentando o próprio movimento da consciência. A relação primitiva biraniana, o facto primitivo do sentido íntimo é, nesse sentido, ocasião de denúncia do tradicional dualismo alma/corpo como segundo, derivado, por relação ao que Ricœur nomeará – em termos que poderiam ser os de Biran – ritmo interior polémico e dramático41 de uma dualidade de existência onde pulsa uma dialéctica da “actividade e da ividade”42. Meditar esta unidade na dualidade que é o homem será, numa certa medida, o objectivo derradeiro de uma filosofia do voluntário e do involuntário que,
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Cf. ID, o. c., p. 18. «Le troisième problème de méthode impliqué par une théorie du volontaire et de l’involontaire est alors de comprendre comment se limitent et se complètent mutuellement une compréhension distincte des structures subjectives du volontaire et de l’involontaire et un sens global du mystère de l’incarnation.» 39 Cf. ID, o. c., pp. 333-397. Ricœur considera, o que não é sem importância para o presente trabalho, como veremos, o carácter, o inconsciente e o facto de estarmos na vida. Cf. PEREIRA, Miguel Baptista, «A Hermenêutica da Condição Humana de Paul Ricœur», in Revista Filosófica de Coimbra, vol. 12, n.º 24 (2003), p. 248 40 PORTOCARRERO, Maria Luísa, «Falibilidade, Mal e Testemunho em Ricœur», in ID (coord.) Mal, Símbolo e Justiça, ed. Unidade I&D-L.I.F., F.L.U.C., Coimbra, 2001, pp. 154-155. Cf.ID, «Corporeidade, Queda e Confissão: uma abordagem de Ricœur», in BORGES, A., PITA, A. P., e ANDRÉ, J. (coord.), Ars interpretandi. Diálogo e Tempo. Homenagem a Miguel Baptista Pereira, Fundação Engº António de Almeida / Instituto de Estudos Filosóficos – F.L.U.C., Porto, 2000, pp. 741 e ss. 41 RICŒUR, P., Le volontaire et l’involontaire, o. c., p. 212. 42 ID, Réflexion faite, o. c., p. 23. Cf. ID Le volontaire et l’involontaire, p. 10-11.
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desse modo, poderá “oferecer uma mediação original entre as posições bem conhecidas do dualismo e do monismo”43. Que Ricœur assuma essa tentativa como modo de continuar a intenção de Maine de Biran – encerrada na frase de Boerhaave44 que tanto gostava de citar – reconhece a dívida da hermenêutica filosófica sa (da sua fenomenologia hermenêutica, pelo menos) para com o biranismo. No momento em que pondera as implicações ontológicas da dialéctica do agir e do sofrer, afirmará: “reencontrei assim a fórmula famosa de Maine de Biran: homo simplex in vitalitate duplex in humanitate.”45 Mais tarde, em Soi même comme un autre, o alcance da influência biraniana será novamente anotado com clareza (e em termos mais justos do que em alguns momentos de Le volontaire et l’involontaire), quando a ideia de uma mediação reflexiva de si se explicita como elemento central no seu pensamento, e o horizonte da atestação46 é tematizado com profundidade: “Maine de Biran é o primeiro filósofo a ter introduzido o corpo na região da certeza não representativa”47 – região suficientemente radical para ocupar o lugar da sensação de Hume e Condillac48 –, razão por que deverá ser visto como elo de uma linhagem de pensamento que, dos clássicos tratados das paixões até G. Marcel, Merleau-Ponty ou M. Henry, permite pensar a complexidade e alcance da noção de corpo próprio49.
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ID, o. c., p. 24. A expressão sempre citada por Biran é retirada de um texto de BOERHAAVE, Herman, Praelectiones academicae de morbis nervorum, Leyde, 1761, t. II, p. 497. «Ergo homo est duplex in humanitate, simplex in vitalitate». Não se ignora que Biran guardará a expressão mas carregá-la-á de vários sentidos, como veremos. Refira-se que a polémica entre monismo e dualismo a propósito da relação psico-física não será estranha a esses sentidos. Cf., LE ROY, George, L’expérience de l’effort et de la grâce chez Maine de Biran, Boivin & Cie., 1937, p. 187 e ss. ; Veja-se ainda, entre outros comentários MONTEBELLO, P., La décomposition de la pensée. Dualité et empirisme transcendantal chez Maine de Biran, Million, Grenoble, 1994., p. 160 e ss. 45 RICŒUR, P., Réflexion faite, o. c., p. 24. Cf. Le volontaire et l’involontaire, o. c., p.p. 213. 46 ID, Soi-même comme un autre, Seuil, Paris, 1990, p. 150, n. 1 ; Cf. ID, o.c., p. 347 e ss. 47 ID, o. c., p.372. 48 ID, o. c., l. c. À época do Le volontaire et l’involontaire, a importância de Biran, para além da de interlocutor privilegiado para debater a questão do esforço muscular, já é reconhecida como a de um percursor na via de uma necessária negação das “pretensões de um sensualismo superficial que faria do eu uma simples diversidade de impressões sensíveis, um ‘coral de imagens’”(ID, Le volontaire et l’involontaire o. c., p. 318). E Biran é, afirmará Ricœur, “invencível” ao defender um cogito cuja unidade pessoal dos respectivos actos é dada pela unidade do esforço, ou seja, pela tensão do próprio existir como corpo. 49 ID, o. c., p. 371. Não pode iludir-se, sabemo-lo bem, que, mesmo convocando outros autores, a afirmação de que é o exemplo de Maine de Biran que se prossegue nas diferentes heranças do pensamento fenomenológico não estaria isenta de riscos. Argumentar-se-ia, em qualquer caso, que uma linhagem de pensamento, longe de evidente, está pejada de dívidas caladas tanto ou mais importantes, que as influências nunca se exercem da mesma forma, que as teses raramente são aceites de um mesmo modo, 44
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3. Consciência e corpo Os momentos mais vigorosos da meditação biraniana sobre o corpo não surgem desligados do que Maine de Biran considera ser a tarefa mais urgente do próprio filosofar: esclarecer as condições do existir consciente ou, mais precisamente, a “ligação que se encontra estabelecida na ordem dos factos interiores entre o exercício real do pensamento e o sentimento de existência individual, tanto como entre o sentimento do eu e a sua existência real.”50 Ora, como já notou P. Montebello, esta questão é, de um ponto de vista filosófico, tanto mais complicada quanto, em filosofia, se considerou que “o pensamento da existência e a existência do pensamento, começam separadamente e são objecto de discursos radicalmente separados”51. Segundo Biran, essa divergência não é confirmada pelos factos, devendo encetar-se o caminho de desvendar, em comum e em simultâneo, as condições de possibilidade de um pensamento racional sobre a existência e as condições de possibilidade de uma afirmação existencial do pensamento52. Será, pois, para o filósofo de Bergerac, determinante considerar o começo do pensar enquanto vem à existência, enquanto aquele e esta se cruzam sem se confundirem, sendo esse cruzamento e essa diferença o que, em derradeira análise, permite que ambos existam realmente. Uma tal intercepção supõe, portanto, que pensamento e existência não coincidam, tendo em conta, por um lado, que é o facto de o pensamento ser diferente da existência que a torna possível como existência pensada e que, por outro lado, é igualmente a diferença própria da existência que permite ao pensamento existir. O pensamento terá, assim, como condições necessárias as da própria existência como ser vivo; todavia, como condições suficientes não poderá beneficiar que os conceitos não são por igual conciliáveis. Mas não pode negar-se que a originalidade e profundidade da meditação de Biran não deixará de chamar a pensar, pelo menos, a partir de um ponto preciso nunca ignorado, a saber: a necessidade de meditar o corpo como modo de ser originário do próprio existir, onde a subjectividade não compromete a concretude da corporeidade mas se prepara através dela, e a resistência do corpo não perturba mas permite o modo como uma consciência aparece a si mesma interiormente e se apodera de si na diferença constitutiva que prepara e torna possível o modo humano de estar no mundo. As referências e considerações sobre a presença de Biran em autores contemporâneos poderiam multiplicar-se por indicações explícitas, assimilações comparativas, ou analogias mais ou menos pertinentes. 50 Décomposition, versão revista, p. 364, n. 51 MONTEBELLO, P., La décomposition…, o. c., p. 79. 52 ID, o. c., l. c.
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apenas daquelas que permitem o existir. Desde logo, as condições do pensamento não poderão ser físico-orgânicas, caso em que seríamos obrigados a presumir que o pensamento, a consciência de si, as faculdades intelectuais se antecipariam ao seu próprio exercício e nasceriam já consumadas com o primeiro grão de existência. De igual modo, também a explicação inatista não satisfaz: o exercício do pensar por aquele que pensa chegaria sempre tarde ao começo do pensar. Não basta propor arbitrariamente uma instância sensível-inteligível para dela fazer derivar, por um salto que sempre ficará por explicar, algo ontologicamente diferente. A solução de Biran terá a elegância das grandes fórmulas científicas: o começo do pensar(-se) é uma relação primeira entre a força da vontade e uma resistência muscular, resumindo o esforço essa relação genética da ideia de mim. Nele se implica, num mesmo instante de duração, a ligação entre um poder de agir e uma resistência distinta mas não separada. A força, nessa relação, revela-se em e através da réplica da resistência muscular e a resistência conhece-se interiormente na vocação de apropriação pela força da vontade. Os dois elementos não existem como tal fora dessa relação, sem que no entanto se possam confundir. A relação primitiva é uma dualidade primitiva. No esforço53, o eu atesta-se ou apropria-se de si54 corporeamente e, nesse gesto, sabe-se, estabelece ideias, pensa. O solo do pensar é actividade que se sustenta num elemento não orgânico, voluntário, e num corpo cuja resistência dócil revela como próprio. No alcance desta reflexão poder-se-á ler que o corpo se faz obreiro da individualidade e elemento constitutivo de um existir consciente porque tensional, activo, ex-istencializado. O sujeito do esforço só pode ser o indivíduo completo cujo corpo próprio é uma parte essencial, constituinte55, sendo, por isso, capaz de pensar a sua existência e existir como ser pensante. O cogito biraniano será, neste sentido, desvelado originariamente como um volo, um “eu posso” corporalizado (nunca uma “substância abstracta” que tem por atributo o pensar), como um cogito integral, apesar de interiormente fissurado por força da sua constituição dual. Numa palavra, como 53
Décomposition, versão revista, p. 364, n. Cf. GOUHIER. H., Les conversions de Maine de Biran, Vrin, Paris, 1948, o. c., p. 273. 54 Essai, I, p. 139 55 Cf. Commentaires XVII, p 38 : «Il faut savoir si la connaissance de mon individu précisément pris n’importe pas nécessairement avec elle la connaissance ou le sentiment propre de la présence d’un corps sur qui la force agissante se déploie ; et c’est ici une de ces choses qui ne peuvent feindre par l’imagination, mais qui sont l’objet de l’aperception intérieure.»
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Biran repetirá amiúde, não é possível “pensar ou ser eu sem ter o sentimento interior contínuo (não digo a ideia objectiva ou a imagem) dessa coexistência do corpo próprio.”56 Se assim é, ter-se-á equivocado toda a história da metafísica ao considerar fundamental o problema da relação da alma ao corpo. Nele não reside qualquer dificuldade, nem qualquer mistério, uma vez que a ligação é dada imediatamente pelo próprio facto de consciência57 tal como nasce no esforço aperceptivo. Na relação primitiva patenteada pelo esforço, tal como Maine de Biran a entende, o próprio sujeito aperceptivo está constituído58. E se é nessa relação a si ou dualidade primitiva que se constitui, forçoso se torna concluir que o sujeito que assim se apercebe jamais se conhece numa vontade em si ou num corpo representável – contra as pretensões quer de alguns metafísicos, quer de muitos fisiólogos que prolongam a opção por uma episteme da representação que julga objectivável o que é interior num corpo sobre-representado. A meditação sobre o corpo não se encerrará, pois, sem reconhecer e denunciar a violência feita ao corpo próprio, interior, sem figura, pelas várias propostas de tradução do pensamento num qualquer relevo sensível.
4. Presenças do corpo. Como Descartes59, também Biran persegue um “conhecimento primitivo, que a dúvida do céptico não consiga morder”60. Todavia, o princípio que busca o filósofo de Bergerac deve ser real e demonstrável, em suma, deve ser um facto, na exacta medida em que tudo o que existe para nós nos é dado como facto. Compreenderemos o que desta forma se enuncia, se tomarmos em consideração o que Biran entende por “facto”61: “Um facto implica necessariamente uma relação entre dois termos, ou dois 56
Décomposition, versão revista, p. 364, n. Cf. Dernière philosophie : existence et anthropologie, p. 108. 58 Cf. ID, o. c., p. 109. 59 Cf. Essai, I, p. 117: “Pour procéder régulièrement à cette analyse, je reprends le principe de Descartes je pense, j’existe, et descendant en moi-même, je cherche à caractériser plus expressément quelle est cette pensée primitive (…)”. 60 BAERTSCHI, Bernard, L’ontologie de Maine de Biran, Éditions Universitaires Fribourg, Suisse, 1982, p. 7. 61 Sobre a “história” deste texto e respectiva opção de edição no contexto das Œuvres de Maine de Biran, Cf. MOORE, F.C.T., “Introduction”, in Essai, I, pp. IX-XXVIII. 57
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elementos assim dados em conexão, sem que nenhum deles possa ser concebido ele próprio separadamente do outro.”62 Será este um critério decisivo que permitirá medir, desde logo, o princípio proposto pela escola sensualista de Condillac: este, com toda a evidência, não é, atendendo à definição biraniana, um facto. Ao afirmar que a estátua que se torna odor de rosa, aquilo que Condillac entende por sensação63, na realidade, não ará de uma afecção e desta nenhuma faculdade pode surgir, na medida em que na matéria afectiva não está presente qualquer forma consciente. Por esta razão, Biran considerará que o termo “sensação” é ajustado a um primeiro modo composto, ível de decomposição, uma vez que abrange uma forma unida a uma matéria variável64. As faculdades que Condillac faz derivar de uma sensação que se metamorfoseia65 mais não serão – tendo em conta que, em rigor, uma tal doutrina apenas encara “modos relativos a uma capacidade receptiva única” – do que “características abstractas”66 retiradas de uma “hipótese impossível ou contraditória”67. Isto porque nela se cruza um princípio estabelecido artificialmente68 numa falsa simplicidade com um pressuposto inatista no seu fundo, ao tomar os objectos exteriores que determinam a sensação como “causas necessárias, ou o princípio não só da formação das nossas ideias, mas mesmo da geração de todas as faculdades hipoteticamente derivadas da sensação”69. 62
Essai, I, p. 4 Cf. ID, o. c., p. 2. Se existisse para a estátua um tal fundamento real anterior à expressão deste facto eu sou odor de rosa -, então sim, a estátua deixaria de se identificar completamente “com essa modificação” ando a ser-lhe possível separar o eu dos factos circunstanciais associados mas não identificados com ele. A sensação de Condillac não é, pois, o último anel da decomposição da faculdade de sentir. Cf. para esta última afirmação, Décomposition, versão premiada, pp. 53-56. 64 Cf., entre múltiplas ocorrências da mesma meditação, De l’aperception, pp. 144-145; Décomposition, versão premiada, p. 142; ID, versão revista, p. 434. 65 Essai, I, p. 99. Na página seguinte, Biran acrescenta: «Je me bornerai à considérer la doctrine de Condillac sous ce dernier point de vue, c’est-à-dire comme tendant à poser la psychologie sur une base purement logique au lieu de l’établir sur les faits simples de la nature.» 66 Décomposition, versão premiada, p. 59; Cf. ID, o. c., versão revista, p. 337. Condillac propõe-se realizar uma decomposição da faculdade de sentir; ora, tal só é possível se se considerar na alma da estátua que devém cada transformação da sensação qualquer coisa de individual ou de permanente, de um, de idêntico, de causal A solução que apresentará é engenhosa: enumerará características que a sensação pode assumir, considerando-a no entanto, sempre mesma. Cf. Essai, I, p. 100. 67 Essai, I, p. 101. 68 Décomposition, versão revista, p. 339 ; Cf. Essai, I, p. 103: «Et vraiment il ne serait pas difficile de tout déduire du terme de sensation par l’analyse, quand on y aura tout fait entrer par la synthèse: il ne s’agit alors que de résoudre la puissance d’un signe qu’on a composé soi-même arbitrairement.» 69 Essai, I, p. 101 63
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Os equívocos que assim se desenham não serão ultraados por Destutt de Tracy, apesar das promessas contidas na sua análise da motilidade. Prolongará, a seu modo, tais equívocos ao esquecer a dimensão individual da sensação de movimento e a diferença inerente à presença originária do sujeito activo a si próprio. Por conseguinte, também suporá primitiva a hipótese abstracta de um eu constituído como virtude que sente, como se o princípio da vida de relação ou consciência pudesse confundir-se com os modos afectivos que, precisamente, se caracterizam pela ausência do eu. Tal confusão equivale, de acordo com a perspectiva biraniana, a sustentar que, num mesmo plano de análise, se podem explicar tanto os fenómenos do ser vivo, como os do pensamento, e que as generalizações e classificações fisiológicas conseguirão exaurir os factos de sentido íntimo. Pela sua parte, Biran não o crê. Importar-lhe-á, então, por força dessa posição e como tarefa determinante, traçar diferenças a vários níveis, distinguindo tipos de factos, singularizando planos de análise e métodos de investigação adequados. A nascente ciência do homem não poderá ignorar tamanha necessidade e reclamará tais procedimentos. Considere-se, a título de exemplo elucidativo desta necessidade, o fenómeno do movimento corporal no ser vivo, que a fisiologia descreve, a partir da sua génese,
como
essencialmente
muscular70.
Questione-se,
desde
logo,
se
a
“contractilidade muscular orgânica sensível”71 pode ser tida como análoga de um movimento onde a vontade toma parte predominante e se uma e outro podem ser estudados de forma idêntica, pressupondo as mesmas condições e causas. Ponderemos, agora, este movimento em que a vontade toma a iniciativa: poderá a sua realidade ser contemplada apenas nos efeitos que se inscrevem nos órgãos onde podem ser lidos e nos respectivos desenvolvimentos exteriores, ou deverá considerar-se a irredutibilidade do voluntário em nós próprios, mesmo quando permanece irrepresentável? Tenhamos em linha de conta, finalmente, neste contexto, uma última questão: o corpo descrito fisiologicamente na contractilidade muscular orgânica coincide com o corpo apropriado à vontade?
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Cf. ID, o. c., pp. 129-130. Cf. FROGNEUX, Nathalie, «La résistance du corps dans l’Essai de Maine de Biran », in Revue philosophique de Louvain, t. 103, nº 1-2 (2005), p. 71. 71 Essai, I, p. 129.
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Que a vontade não seja nada de observável não é suficiente para a desconsiderar como facto72 – eis a questão decisiva. Ao contrário do que defenderá A. Comte, Biran não vê contradição entre a positividade do facto e a interioridade, assim advogando que um facto interior é ainda um facto e não uma ilusão. Mais afirmará que, no contexto de uma “ciência dos princípios das ideias”, não se compreende como pode deixar de ser interior e individualmente conhecido o facto primitivo. “Em psicologia e em moral há factos primitivos a constatar”, sendo “necessário itir outros fenómenos que não aqueles que se podem manifestar aos sentidos externos, outra realidade que não aquela que pode ser vista ou tocada”. O grande e belo preceito nosce te ipsum tem um apoio outro “que não o da lógica e da física (…)”73, um princípio real que se oferece como interior ou íntimo”74 àquele que se pretende conhecer. Que Biran encontre esse princípio no esforço, que a ele faça referir o facto primitivo do sentido íntimo, que sobre a segurança desse facto afirme que nada antecederá, na ordem do propriamente humano de uma ciência do homem, o sentimento de si75 e a condição da consciência, são dados significativos: o exercício profundamente 72
Será um facto de sentimento. Cf., por exemplo, De l’aperception, p. 27: «Dans l’analyse des phénomènes intérieurs, il n’est pas permis, il n’est pas même possible, de faire abstraction de la cause, que cette cause même, loin d’être une inconnue, jouit de toute l’évidence d’un fait de sentiment, puisqu’elle ressort du caractère même de son produit, qui ne devient perception qu’en elle et par elle. » Antes de mais, deve afirmar-se que a “capacidade” de realizar algo voluntariamente me diz imediatamente que sou eu que sinto, que sou eu que faço, que sei a disponibilidade e os limites da força que apercebo. A causa dos actos voluntários, o querer, enquanto não existe senão no eu conhece-se imediatamente. Por isso não se possa fazer abstracção da causa. O querer de um acto dito voluntário não pode deixar de ser imediatamente conhecida por quem age. O que se pode observar de um movimento efectuado é diferente, pois a causalidade subjectiva inerente à vontade só reflexivamente, por um sentido íntimo, pode ser conhecida (porque só aí ganha o seu valor individual). Ignorar as diferenças é cair numa confusão insustentável e numa pretensão infundada: a de que é possível estudar de um mesmo modo uma impressão iva e o acto ou movimento que segue ou acompanha o esforço criado pelo eu. 73 Essai¸ I, p. 105 74 Décomposition, versão revista, p. 303. 75 O termo “sentimento”, sabemo-lo bem, encerra riscos. Devemos, no entanto, notar o contexto e, principalmente, o sentido – riquíssimo de implicações estritamente filosóficas – em que Biran o usa. É à leitura muito particular que empreende dos textos de Tracy, que podemos recorrer para aquilatar o alcance de tal sentido: trata-se de sublinhar como primitivo na ordem do conhecimento o sentimento de uma força em exercício, o sentimento de um acto – o sentimento e não, precisamente, apenas uma sensação afectiva. A diferença é enorme entre a individualidade sentida por aquele que age e a generalização de um princípio abstracto; o sentimento apenas se encontra e conhece individualmente, irrepresentavelmente, pressupondo a presença “daquele que sente” e, por isso, tendo-o como critério e princípio; a sensação é uma generalização tomada da observação de factos exteriores e erigida em princípio explicativo, em lei geral, de modo arbitrário. Tracy verá tal distinção como uma bizarria; prolonga, pois, o horizonte da filosofia de Condillac. Um sentimento íntimo, um sentir anterior e, neste sentido, independente dos outros sentidos que sentem, seria, para ambos, insustentável. Para Tracy algo como um sentimento de si dependeria e reduzir-se-ia sempre ao próprio sensorium commune, e não seria
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corporal de si encerra a certeza de uma individualidade precisa76 que se exprime pela palavra eu77, consciência de si78, pensamento, actividade livre79 e pessoa80. No esforço “ter consciência de si e existir para si” são – certissima scientia et clamante conscientia – sinónimos, na exacta medida em que o sujeito é ele próprio uma força que se faz acção e tem, assim, por referência incomensurável um corpo coexistente que se oferece como plano possível de exercício. A “condição requerida [para aquilo a que chamamos conhecer pode, deste modo, ser considerada o] (…) estado chamado ‘conscium ou compos sui’, em que se está para si ou em si”81 por oposição ao que, em linguagem corrente, se pode afirmar um estado fora de si82. “Sem o sentimento de existência individual [e de qualquer coisa que concorre com esta existência como distinto dela] não há facto que possamos dizer conhecido, não há conhecimento de espécie alguma, pois um facto nada é se não for conhecido, isto é, se não houver um sujeito individual e permanente que conheça”83. Por maioria de razão, fora desse estado de consciência não haverá, pois, “ciência própria do ser pensante e das suas faculdades.”84 Será esta uma tese magna do biranismo, plena de implicações a dilucidar. Em primeira análise, terão um alcance crítico: é um erro substancializar as propriedades conscientes do homem, partindo do pressuposto de que é desnecessário conhecer o princípio activo para que se seja ou aja; é um erro simétrico absolutizar o princípio do pensar, como as condições suficientes do facto de consciência, julgando que essas condições são anteriores ao próprio exercício apercebido de si. Em segunda análise, as referidas implicações serão clarificadoras: a ciência do sujeito erige-se nos limites da vida impessoal, mas não se funda nela,
mais do que questão da própria faculdade geral de sentir e pensar. Para Biran, ao contrário, nada é mais diferente de uma faculdade geral de ser afectado e reagir do que o sentido interior particular que coloca o indivíduo em relação consigo próprio quando se exerce75 – e de que o sentimento é medida incomensurável. 76 Cf. Dernière philosophie: existence et anthropologie, p. 13. 77 ID, o. c., l. c. 78 Cf., por exemplo, Décomposition, versão revista, p. 387. 79 Dernière philosophie: existence et anthropologie, p. 75. 80 ID, o. c., p. 131. 81 Essai, I, p. 3. 82 ID, o. c., l. c. 83 ID, o. c., p. 2. 84 Décomposition, versão premiada, p. 35: «C’est ainsi qu’en sortant du domaine de la conscience, ou prenant tout à fait hors d’elle la notion de cause, de force productive de ce qui s’opère en nous (…) il n’y a plus de science propre de l’être pensant ou de ses facultés.»
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exigindo como critério de demarcação aquele que lhe pode ser fornecido pelo gesto de concentração no próprio seio do sujeito pensante85. O recurso de Biran às expressões latinas conscium sui e compos sui merece atenção. Etimologicamente, o termo “consciência” reporta-se à conscientia, ao conscius (cum-scire) latinos. Cum-scire, conscius, conscientia traduzem, originariamente, a ideia de um conhecimento (scientia) partilhado (co, cum) por um grupo de iniciados conspiradores (conscii) que conhecem a complexidade desse saber e o escondem dos outros, assim inaugurando um espaço comum reservado e limitado86. Apenas no interior desse “lugar” se “conhece”. Estar “consciente” seria, então, partilhar esse conhecimento e esse lugar de iniciado. Uma evolução do conceito dá-se quando a conscientia a a albergar também – com Cícero87 – a ideia de interioridade subjectiva associada à moral, tornando-se então possível dizer, por exemplo, “tenho consciência da minha falta”, “estou consciente de não estar em falta”. Em face desta precisão, o sujeito individual deve agora “redobrar-se, tornando-se ‘sibi conscius’; e o fardo do segredo deve ser transportado por ele”88, mudando-se o espaço secreto dos iniciados para a intimidade. O sentido em que Maine de Biran usa os termos conscium ou compos sui não é estranho a este carácter de interioridade, nem à ideia de um conhecimento detido individualmente. No entanto, o filósofo de Bergerac acrescenta ao seu conceito de consciência sentidos mais precisos ainda. O carácter de interioridade que lhe associa evidencia as condições primitivas da presença a si e resume o próprio dinamismo do sujeito que está para si ou em si. Quanto à scientia, também ela será especificada na sua acepção. Para Maine de Biran, o estado de conscium sui ou compos sui significa, sem dúvida, um saber-se que, todavia, não é um saber da ordem representativa, ou seja, não equivale à consciência de algo como objecto de um saber positivo – tal obrigaria a ponderar uma consciência da consciência em relação ao objecto, de uma consciência da consciência da consciência e assim ad infinitum até, eventualmente, a uma consciência
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Por resta razão, como veremos, o método que convirá à abordagem da ordem de factos interiores será a reflexão e não a representação; e qualquer decomposição fisiológica do pensamento será segunda por relação à decomposição real atestada pelo sentido íntimo. 86 Cf. CHÉDIN, J. L., La condition subjective. Le sujet entre crise et renouveau, Vrin, Paris, 1997, p. 24. 87 ID, o. c., l. c. 88 ID, o. c., l. c.
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divina89 que tudo saberia, inclusivamente, sobre a consciência de si. A scientia que a esta é inerente será o “saber” que se sabe, sendo que consciência de si se funda na relação pela qual o sujeito se reconhece distinto das representações e dos respectivos objectos. A scientia da conscientia biraniana revelar-se-á mais como stude – um aplicarse, diligenciar, ligar-se, interessar-se, exercer-se – do que como nosce90. Defende Biran que, estando dada a relação subjectiva – a relação de esforço entre vontade e corpo –, o sujeito é consciente, ou seja, existe e sabe que existe num mesmo momento, podendo afirmar-se que “no eu a ciência e a existência são idênticas”91. O termo consciência pode, neste sentido, ser aprofundado pelo de apercepção. A letra do conceito é leibniziana, mas o espírito propriamente biraniano explicita-se nos seguintes termos: apercepção designa o sentimento do eu, ou seja, uma modificação originária e sui generis que corresponde ao sentimento de esforço indivisível da resistência92. A consciência terá como condição o próprio esforço – a “relação sentida é a consciência propriamente dita”93 da “individualidade pessoal”94 –, e assinalará a evidência da presença95 do sujeito a ele próprio, não como princípio lógico ou fenómeno sensível, mas como eu existente, consciente, como actividade sentida ou liberdade. Assim se compreende que apenas um facto pode ser o primeiro: aquele que funda a consciência, aquele que é princípio da vida de relação. Ao dizer-se que o esforço é o facto primitivo do sentido íntimo afirma-se que o facto de me saber existir é o primeiro de que é possível dar conta, tanto na sua constituição, como nos seus 89
Invocamos a crítica de Biran ao ocasionalismo à qual regressaremos na última parte do presente trabalho. Cf., Décomposition, versão premiada, p. 37. «(…) le système métaphysique, qui plaçait les actes ou mouvements que le moi s’attribue comme sujet et cause sous la dépendance immédiate d’un moteur intelligent suprême, a pu se lier à l’opinion qui rapporte les fonctions organiques à un autre principe intelligent et agissant également hors de la conscience. » 90 Cf. Discours, p. 49: «Homme, prend l’homme pour l’objet constant de ton étude. Stude au lieu de nosce, voilà le vrai percept qui nous convienne». 91 Commentaires XVIII, p. 218. 92 Cf. de l’aperception, p. 101; Cf. DEVARIEUX, A., Maine de Biran…, o. c., p. 42. 93 Commentaires XVIII, p. 174. 94 Dernière philosophie: existence et anthropologie, p. 13 : «En se concentrant d’abord dans les limites de l’observation intérieure ou des faits du sens intime, la pensée primitive n’est autre que la conscience de l’individualité personnelle et exprimée par le mot je.» 95 Cf. Décomposition, versão premiada, p. 65, n. «Il y a donc dans notre sens intime une liaison nécessaire entre le phénomène ou l’apparence et la réalité, qui n’existe point ou ne s’applique point au dehors. Voilà pourquoi Descartes a cherché justement la source de l’évidence là où elle est, dans le sein même de la pensée.»
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elementos (elementos estes que não precedem a própria relação); nenhum outro facto o antecede, pois, na ordem do conhecimento. Tal não significa, no entanto, que apenas exista um facto do sentido íntimo; mas será ainda o esforço que, associando-se e complicando-se com os fenómenos exteriores, constituirá nos seus graus de intensidade outros tantos factos interiores de uma existência psicológica complexa. Pelo que fica dito, não extrapolaremos ao considerar que o “co” ou “cum” do conscium ou compos sui biraniano guarda toda a profundidade dessa relação interior e primitiva que se funda no esforço, desvelando-se, finalmente, no modo de apropriação íntima da realidade existencial e da sua estrutura essencialmente dual. Nesta reflexão, não será certamente de negligenciar que do esforço faça parte, como elemento constitutivo, o corpo. Biran descobre no próprio centro do facto primitivo, como sua condição, um aparecer do corpo, revelador de uma realidade igualmente primitiva do corpo propriamente humano, realidade que se desvenda como resistência muscular interiormente sentida. Neste sentido, num gesto sem precedentes de pensamento, sugere-se a necessidade de contemplar a realidade de um corpo que, originariamente, não é um dado para a consciência, mas é dado com ela. Porquanto a condição da consciência é a “dualidade primitiva”96, o mesmo é dizer que não há consciência sem corpo97. Se consultarmos o testemunho do sentido íntimo, confirmamos que a existência apercebida é relação, acto atestado por um sentimento de causalidade primitiva que permite guardar toda a diferença entre uma afecção sofrida e um acto exercido voluntariamente para mover o corpo98. Falamos, pois, do “acto ou movimento que segue ou acompanha o esforço criado pelo eu, [e que] não é percebido como produto voluntário senão no sentimento da sua causa ou na ideia reflexiva do querer ”99; acto que depende do exercício de uma “mesma vontade” que não existe de um modo absoluto e abstraído de qualquer condição, mas somente na relação ao conjunto das partes do corpo que lhe obedecem, “num esforço essencialmente relativo” cujos elementos, o corpo constrigente e simultaneamente dócil e o sujeito da força (que existe
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Essai, I, p. 4. Cf. BAERTSCHI. B., L’ontologie…, o. c., p. 10. 98 Essai, I, p. 9. 99 Décomposition, versão premiada, p. 47. 97
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como força consciente apenas na resistência à sua acção) são inseparáveis e não são constituídos senão um em relação ao outro.100 Nenhum mistério subsiste nessa ligação entre vontade e corpo interiormente apropriado. Exerço-a, sou essa relação101. O ponto é decisivo para Biran, tanto que sobre ele se proporá questionar todo o horizonte científico e filosófico do seu tempo: “como saberíamos que existem causas, se não soubéssemos primitivamente ou se não apercebêssemos imediatamente que somos causas, ou, noutros termos, se o eu não fosse causa para si próprio, se a causalidade primitiva não fosse idêntica à sua existência apercebida”102, ou, o que não algo de diferente, se não nos soubéssemos consciência corporalizada?
5. Plano Biran reconhece o papel do corpo na génese da consciência, ao desvendá-lo num regime de presença ível apenas a um ponto de vista interior; este funda-se no esforço onde o corpo se revela numa “apercepção individual que tem por objecto distinto (também imediato) o conjunto das partes que obedecem à mesma vontade e por sujeito uno o do próprio esforço (relativo) aplicado a dirigi-las, a contraí-las, a movelas”103. Depois de dilucidarmos o contexto no qual Biran tematiza a sua teoria do facto primitivo no esforço, enfrentaremos a arqueologia deste corpo próprio e analisaremos a questão de fundo que orienta a meditação biraniana: “Ao considerar-se um problema a
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A tese formula-se desde a correspondência com Tracy. Dedicaremos um momento específico deste trabalho à análise desses documentos. 101 Cf. Essai, I, pp. 6-7, im. Apenas para aqueles que consideram cada um dos elementos dessa relação abstractamente será problemática a relação e insuperável a separação entre elementos tão distintos como uma “força da vontade” e um “corpo”; apenas para aqueles que julgam conhecido só o que se “explica” negarão tal relação, esquecendo que a apercebemos e, assim, a conhecemos “desde sempre” na manifestação interior da causalidade originária, ou sentimento individual, subjectivo e idêntico do infalível exercício apercebido – dual - de si. 102 Cf. Commentaires XIX, p. 320 : «Transformez donc la question ontologique précédente dans cette autre question psychologique et vraiment fondamentale de la science : comment saurions-nous qu’il y a des causes, si nous ne savions pas primitivement ou si nous n’apercevions pas immédiatement que nous sommes causes, ou, en d’autres termes, si le moi n’était pas cause pour lui-même, si sa causalité primitive n’était pas identique à son existence aperçue. Ce premier pas est si important à mes yeux que tout le sort de la philosophie en dépend.» 103 Décomposition, versão premiada, p. 126 n. Para uma abordagem abrangente do tema do «sentimento imediato» no contexto da Décomposition, veja-se a análise de Biran nas pp. 78, 92, 119 140, 161.
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origem do conhecimento representativo do corpo, supõe-se já resolvido o problema da existência, ou melhor, não se crê que haja lugar a colocar uma questão”.104 O lugar central de um pensamento aprofundado sobre o corpo, o alargamento necessário do campo conceptual e teórico para albergar esse aprofundamento, configura a filosofia biraniana do corpo, na nossa perspectiva, como uma somatologia subjectiva105. “Somatologia subjectiva” porque se trata em Biran de uma interrogação integral e englobante sobre as presenças e repercussões do corpo no centro da existência pessoal e de uma investigação que, na “primeira pessoa” e do ponto de vista do sentido íntimo, se propõe a possibilidade de fundar uma “ciência do corpo” como 104
Essai, II, p. 288. O recurso a esta terminologia tem, no presente trabalho, valor de programa, de um programa que se pretende agora apenas formular. Para formar o nosso próprio horizonte conceptual correspondente ao termo somatologia, cruzámos duas influências. Primeiro, as referências preciosas de Husserl nas Ideen II (Cf. HUSSERL, E., Idenn zu einer reinen Phänomenologie und phänomenologischen Philosophie II : Phänomenologische untersuchung zur konstitution. Idées directrices pour une phénoménologie et une philosophie phénoménologique pures II : Recherches phénoménologiques pour la constitution, (trad. Franc. de E. Escoubas), P.U.F., Paris, 1982, nomeadamente, p.144 : C’est dans cette particularité qu’est l’animation que réside le fait que du somatique, et finalement tout ce qui est somatique à quelque point de vue que ce soit, peut prendre une signification psychique, donc aussi là où le somatique n’est pas phénoménalement d’emblée de l’âme ». O recurso ao termo « somático » – do soma grego, diferente do corpus latino, originalmente denominador dos corpos em geral – (na tradução sa também igual a “leiblich”) é significativo e obriga a uma ponderação do corpo para aquém do corpoobjecto, mas não apenas como “carne”. Uma segunda referência encontramo-la no conjunto de reflexões sobre o corpo que encontramos nos textos do pensador português José Gil. Sobre a pertinência do conceito no filósofo já se expressou LOURENÇO, E., “José Gil. Le philosophe de la chair”, in Le Nouvel Observateur. 25 grands penseurs du monde entier, Hors-série, décembre 2004/janvier 2005, p. 38 : «Dans cette essai, les références à Husserl et à Merleau-Ponty s’effacent en faveur du dialogue avec Deleuze. Sa tentative de rendre viable une véritable somatologie comme discours vraiment englobant au sujet du corps l’amène à élargir l’application de son concept de champ transcendantal à des domaines qui lui sont chers, celui de l’esthétique ou de la danse, art du corps par excellence ». Da produção de J. Gil destacamos para o caso presente : GIL, José, Metamorfoses do Corpo, (2ª edição), Relógio d’água, Lisboa, 1997; Fernando Pessoa ou a Metafísica das Sensações, Relógio d’Água, Lisboa, s/d; A Imagem-Nua e as Pequenas Percepções. Estética e Metafenomenologia, Relógio d’Água, Lisboa, 1996; Movimento Total. O Corpo e a Dança, Relógio d’Água, Lisboa, 2001. A nosso ver, tais possibilidades são antecipadas por Biran que se propõe elaborar uma investigação englobante sobre o corpo e estender a sua meditação desde a questão do princípio do pensar e da origem do conhecimento do corpo próprio, até às fronteiras de cada sentido do corpo, de cada frémito, de cada dor, de cada sensação, de cada percepção, de cada som, cor, cheiro ou sabor, de cada sentimento. A sua investigação será consequente: procurar os ensinamentos do corpo, seja sobre a apercepção pessoal ou sobre a consciência, sobre as ideias ou sobre as faculdades, sobre os segredos da vida psicológica, sobre o temperamento, a alienação ou a mais prosaica das disposições do carácter. Por isso, dizemos que se trata de uma “somatologia subjectiva”. Uma última nota: acrescentamos o termo “subjectiva” com um duplo intuito. Primeiro para traduzir o horizonte em que a questão do corpo se resolve no contexto do biranismo; depois, e consequentemente, para marcar a diferença entre o sentido de “somatologia” que se pode aplicar à reflexão de Biran e o contexto neurobiológico – que, apesar de não se poder ignorar, representa um diferente plano de análise – em que o mesmo termo é por vezes igualmente usado. Cf. a este respeito as interessantes análises de DAMÁSIO, António, O Sentimento de si. O Corpo, a Emoção e a Neurobiologia da Consciência”, Europa-América (13ª ed.), 2001, nomeadamente, pp. 179-183. 105
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outro projecto que não o de um conhecimento exterior, compartimentado, sobre o corpo. E esta investigação será entendida como central: será o próprio desenvolvimento de uma verdadeira “ideologia subjectiva” (de uma metafísica do sentido íntimo, de uma psicologia), indispensável à real concretização dos desígnios da novel ciência do homem, que exige redobrar-se de um saber conglomerador dos modos de presença do corpo e respectivos ensinamentos. Será, então, a nosso ver, no horizonte da tentativa de viabilização de uma urgente somatologia subjectiva, que Biran nos convocará para a reformulação de um conjunto de noções fundamentais, como as de “consciência”, “experiência”, “interior do corpo”, “inconsciência” – reformulação que deve ser capaz de tornar tais noções aptas a integrar a galeria de novos conceitos do corpo, como sejam, os de “consciência corporalizada”, “experiência de ser causa” (ou sentimento de causalidade subjectiva), “espaço interior do corpo”, “inconsciente somático”. A questão do corpo torna evidente um diálogo crítico de Biran com a tradição ideológica e com o centro da respectiva problematização “da origem que podemos ter do corpo próprio”. A resposta de Biran, revolucionária, não se esquivará à consideração da importância, limites e especificidade de um segundo modo de presença do corpo (que a Idéologie julgará o único): aquele se oferece à “representação objectiva desses instrumentos ou meios da motilidade, tal como a fazem os anatomistas que observam as disposições (…) dos diversos órgãos.”106 É a questão do “tocar” que assim se indica. Quando toco o meu corpo, ganho dele uma representação objectiva; mas esse modo de assim conhecer o “meu” corpo é essencialmente diferente do conhecimento corpo que se sente, se percorre e sabe como espaço interior co-extensivo e co-natural à força da vontade. Esta consideração do corpo que toca e do corpo tocado não culminará a interrogação biraniana. Biran encontra a origem do conhecimento do corpo próprio no próprio facto primitivo. Sabe, contudo, ainda, que esse corpo apropriado da relação primitiva, esse corpo da apercepção, não resume a experiência que temos do corpo no centro de uma existência que se complica. Haverá, pois, que considerar, nos limites da consciência de si, um outro regime de presença do corpo que corresponde a um corpo
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Essai, II, p. 288.
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furtivo, rebelde que nunca se conhecerá, mas se pressente “no sentimento, absoluto e geral de todos os elementos sensíveis unidos numa mesma combinação viva.”107 Conforme se “aplique o sentimento imediato às afecções da sensibilidade exterior, determinado sentido externo à representação, tal outro ao conhecimento objectivo ou à percepção, tal modo enfim de exercício daqueles que obedecem (…) à mesma vontade, à reflexão simples e redobrada dos actos e dos seus resultados”108, múltiplos modos de presença do corpo podem ser considerados. Ao corpo presente no centro do meu existir consciente, junta-se um outro corpo furtivo, corpo dos afectos, corpo “inconsciente”. Insólito duplo regime de presença: por um lado, um corpo da apercepção interna imediata, do pensamento, da consciência; por outro, um corpo da materialidade cega das afecções – aquele permite e constitui o pensamento, este dissolve-o. O corpo do homem “são” vários corpos, desvelados em outros tantos modos de presença a pontos de vista específicos, que se articulam numa mesma investigação reflexivamente regulada109 como esforço de circunscrição. O que obriga a pensar cada um dos regimes de presença do corpo? Está traçado o mapa que nos propomos seguir.
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ID, o. c., l. c. Embora pareça distinguir ao nível da representação mais uma ordem de factos, Biran sublinha nesta agem três conceitos: “sentimento imediato”, “representação” e “reflexão”; assim propõe uma tripartição de pontos de vista que, cedo na mesma obra, já havia sido estabelecida com suficiente clareza e, inequivocamente, como um tripla interrogação sobre o corpo. Cf. Décomposition, p. 297. Esta tripartição de pontos de vista é particularmente decisiva, como já havia notado AZOUVI, F., Maine de Biran…, o. c., p. 92 e ss. «Un texte de la Décomposition de la pensée, auquel d’autres font écho, conduit à une tripartition des sciences fondée sur une authentique tripartition des points de vue». Num mesmo sentido, ID “La tripartition des points de vue…”, o. c., p. 7. Cf. DEVARIEUX, A., Maine de Biran…, o. c. p. 46. A comentadora avança a questão de saber se esses três pontos de vista, identificáveis, já o vimos, pela introdução do ponto de vista do sentimento imediato, não são de facto quatro. A sua tese é a seguinte: «Si on regarde de prés, on s’aperçoit qu’à la tripartition sentiment immédiat, représentation, et réflexion, s’ajoute le point de vue de la connaissance objective ou de la perception » (Cf. DEVARIEUX, A., Maine de Biran…, o. c., p. 46). Não partilhamos esta possibilidade. A nosso ver, não pode ignorar-se que Biran destaca (com recurso a itálico) três conceitos aos quais refere outros tantos pontos de vista. Sobre este assunto veja-se as considerações rigorosas de MONTEBELLO, P., La décomposition…, o. c., pp. 103104. Os comentadores de Biran não poderiam, de um modo geral, deixar de sublinhar o ponto em questão. Veja-se ainda, por exemplo, GOUHIER; H., Les conversions…, o. c., p. 191 e ss, ou BAERTSCHI, B., L’ontologie…, o. c., p. 12. 109 Cf. AZOUVI, F., “La triplicité des points de vue …”, o. c. p. 14 : «(…) La tripartition des points de vue trouve sa vérification ultime en étant répétée à l’intérieur de la connaissance réflexive. Celle-ci n’est pas seulement l’une des trois modalités de la connaissance mais bien celle qui les récapitule toutes trois et les fonde à leurs titres respectifs.» 108
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